quinta-feira, outubro 15, 2009

ROBERTO MACEDO

Restituição Godot, a que não chega


O Estado de S. Paulo - 15/10/2009
O adiamento de restituições do Imposto de Renda (IR) lembra a peça Esperando Godot, de Samuel Beckett, premiado com o Nobel de Literatura em 1969. Recorde-se que os personagens principais dessa obra clássica passam o tempo todo a esperar Godot, que nunca chega. Embora a peça tenha seu nome, é um personagem abstrato, ficando para a imaginação do leitor do texto ou de quem assiste à peça. Por essa e outras razões, ela integra o chamado "teatro do absurdo".

Tal como nessa peça, hoje há contribuintes que esperam uma restituição que não chega e argumentos do governo federal em defesa da retenção têm um quê de absurdo, juntamente com outros aspectos que cercam o assunto. Antes de continuar, registro que aprendi muito ao ver o tema discutido em reunião do Conselho de Altos Estudos de Finanças e Tributação (Caeft) da Associação Comercial de São Paulo, coordenado pelo professor Luís Eduardo Schoueri, da Faculdade de Direito da USP.

Segundo este jornal (10/10), o montante retido é próximo de R$ 1,5 bilhão, que não é grande para as contas do governo, mas pode ser individualmente muito necessário para quem tem restituições a receber.

Começando pelo teatro dos absurdos, vale lembrar que não existe no Brasil o que chamaria de "reciprocidade de obrigações". Quando o contribuinte se atrasa a pagar impostos dentro do prazo legal, tem de recolher multa, mora e corre também o risco de perdas patrimoniais. Mas se o governo, nos seus vários níveis, se atrasa na sua obrigação de restituir impostos, não sei de prazos e punições igualmente correspondentes, ainda que nesse caso do IR das pessoas físicas haja o pagamento de juros, ao qual voltarei no parágrafo seguinte.

Prosseguindo com os absurdos, se o governo federal respeitosamente pensasse nos contribuintes, não ousaria reter as restituições sob o argumento, do ministro Mantega, de que eles não terão prejuízos, pois o valor retido cresce mensalmente pela taxa básica de juros, ou Selic, atualmente em 8,75% ao ano. Se tanto, essa observação seria válida para quem fosse aplicar o dinheiro em poupança ou em fundos de renda fixa, que rendem bem menos que a Selic. Na realidade, quem sabe mesmo se vai ter prejuízo ou não são os frustrados contribuintes que não receberam sua restituição. Entre eles, há os que já estão no "preju", pois fizeram dívidas em bancos na expectativa de pagá-las ao receberem o que o governo federal lhes deve. Em particular, houve oferta de linhas de crédito ligadas às restituições, mas mesmo assim a taxas bem superiores à Selic. E há também os que esperavam esse dinheiro para comprar isto ou aquilo, mas recorreram ao caro endividamento para satisfazer suas necessidades.

Absurdo também, porque só se conta um lado da história, é o argumento de que a retenção decorreu de necessidade governamental causada pela queda da sua arrecadação tributária. Porém faltou falar da gastança em que o governo federal está engajado, num processo em que, com o adiamento das restituições, confirma seu desprezo pelos contribuintes. Assim, entre outros dispêndios, prefere dar aumentos a seus funcionários hoje e no futuro, reduzir impostos para compradores de automóveis, fogões e geladeiras - o que é também uma forma de gastar, com a tal "renúncia fiscal" -, tocar seus projetos eleitoreiros, e por aí afora.

No noticiário não vi referência ao fato de que a retenção das restituições também ajuda o governo federal a socorrer Estados e municípios, e a se vangloriar disso, pois estes têm sua participação na arrecadação do IR paga depois de excluídos os valores das restituições. Ou seja, quanto maior a retenção destas, mais eles recebem. Como desse R$ 1,5 bilhão retido quase a metade é desses outros níveis de governo, isso gera menos reclamações pelo que recebem mensalmente da esfera federal.

Se, num lapso de clarividência, o presidente Lula se "vangloriasse" de que "nem hoje nem nunca antes neste país" os contribuintes tiveram prejuízos com o adiamento das restituições, seria o caso de lembrar que isso já foi proposto em 2001 e no seu próprio governo, em 2003, ainda que então sem comprometer o lote final de restituições, em dezembro. Caberia lembrar também que toda a discussão em andamento se restringe às restituições relativas às declarações que não caíram na chamada "malha fina". Para as pescadas nessa trança o prazo e a própria restituição são incógnitas muito maiores.

A propósito, o governo federal pode promover adiamentos alterando os critérios que adota para definir o que cai nessa malha, tal como o governo Lula fez em 2003, entre outros casos, com a "malha saúde", a qual retém as restituições dos que a critério governamental estariam deduzindo gastos dessa natureza "aparentemente exagerados". Como esses gastos tendem a aumentar muito nas idades mais avançadas, tal malha deve estar retendo uma considerável proporção de restituições devidas a velhinhos adoentados.

Em retrospecto, há outra peça nesse adiamento, aquela que o governo prega em contribuintes indefesos dada a ausência de regras efetivas e transparentes que lhes assegurassem, em prazos bem definidos, o direito de receber restituições de impostos que lhes são devidas, alcançando também outros tributos, como IPI, Cofins e ICMS.

Assim, mesmo se o governo federal desovar nos últimos lotes do ano as restituições de IR que até aqui adiou, há muito que reescrever nessa versão nacional do texto de Beckett. Nela seus autores sofrem merecidas críticas pelos absurdos que cometem e propalam, enquanto personagens contribuintes caem em malhas mal tecidas, como essa "da saúde", e outros se frustram com restituições Godot que não aparecem, sejam do IR ou de outros impostos.

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