sexta-feira, agosto 28, 2009

JOÃO MELLÃO NETO

Nós ainda acreditamos na ética


O Estado de S. Paulo - 28/08/2009

O PT salvou Sarney. E isso, para os crédulos militantes petistas, é um desastre. Para entender o que significa ser petista e por que os militantes do partido acreditam ser moralmente superiores é preciso voltar no tempo. Mais precisamente, ao início da década de 1980, quando o PT foi fundado.

Nas universidades e na intelectualidade em geral, o pensamento marxista prevalecia. Eu, então, era estudante. E naquela época quem não abraçava a causa de Marx era automaticamente tachado de simpatizante da ditadura. O regime militar bem que alimentava essa dicotomia. Para seus defensores, quem não era favorável ao sistema era imediatamente identificado como comunista. E assim fluía o pensamento: marxistas de um lado e militaristas de outro, não havia lugar para liberais e democratas.

E o que é o marxismo ou, como proclamam os seus seguidores, a "causa"?

A "causa" é a mais nobre das aspirações que um humano possa ter. Ela defende o comunismo como etapa necessária para se chegar ao socialismo. E tanto o comunismo como o socialismo requerem de seus seguidores que abandonem todo o apego aos bens materiais.

A lógica é perversa: a propriedade privada é a causa de todos os males que assolam a humanidade. É por causa de sua existência que os homens, em vez de colaborarem entre si, preferem disputar a posse de todo e qualquer bem, usando da violência se preciso for. Uma vez abolida a propriedade privada e investindo pesadamente na educação, a geração seguinte necessariamente será solidária, preocupar-se-á com o bem comum e colocará as aspirações coletivas acima das suas próprias, individuais.

Bem, isso vale para as próximas gerações. E para esta, a atual?

Para esta geração, na qual se dará a grande transformação, impõe-se como condição básica que seus defensores tenham um rígido autocontrole. Todos nós fomos criados e condicionados a alimentar ambições materiais e aspirar a toda e qualquer propriedade. Os adeptos da "causa" têm de ter consciência de que essa transição não é fácil. Luta-se contra aquilo que os burgueses chamam de "natureza humana". Querem estes que sejam timbradas como naturais ao homem as ambições materiais, quando elas, na verdade, não passam de um condicionamento proveniente da existência da propriedade privada. Mas, uma vez feita a transição - e não se descarta o uso da violência e da luta armada para tanto -, o "homem socialista" que advirá será em tudo superior ao atual. Esta é a grande "causa": promover a transição da geração atual para a futura, muito melhor.

Os raciocínios que presidem a "causa" são mais sofisticados do que isso e não vale a pena descrevê-los. O importante é ter ciência de que os adeptos da "causa" se sentem agentes da grande mudança. Não é à toa que se sentem, individualmente, moralmente superiores ao restante da humanidade. A "causa" exige muito, mas acaba sendo gratificante. Os seus adeptos não alimentam mais nenhuma dúvida sobre nada. Para todas as manifestações da natureza humana existem explicações plausíveis. E toda mesquinhez, todo egoísmo e toda ganância desaparecerão, uma vez abolida a propriedade privada. Em especial a propriedade privada dos meios de produção.

Pois bem, foi com esse espírito de entrega, renúncia e dedicação à "causa" que nasceu o Partido dos Trabalhadores, em 1980. Era um partido que se proclamava diferente e superior a todos os outros partidos porque não estava ingressando na política para satisfazer vontades e aspirações individuais, mas sim para implementar uma ideia. O PT seria um partido com um norte definido. E esse objetivo era nada menos do que a "causa".

Poucos se recordam agora, mas antes de entrar na fase ética e moralista os intelectuais petistas torciam o nariz quando se lhes propunha que desfraldassem a bandeira do combate à corrupção. Esse era um tema secundário, argumentavam eles. Que importância tem expurgar os corruptos da sociedade quando o grande roubo que existe nela é o perpetrado pelos burgueses sobre os proletários? A classe trabalhadora, diziam, era explorada pelos patrões, que estavam cada vez mais ricos, enquanto os pobres ficavam cada vez mais pobres.

Bem, esse era o clima que perdurou por toda a década de 80. Na década seguinte o PT abraçou de corpo e alma a imagem de um partido ético, que, na esfera pública, não rouba nem deixa roubar. Foi com essa silhueta que o partido cresceu e finalmente alcançou o poder maior, em 2002, com a eleição de Lula para presidente da República.

Tudo isso está sendo relembrado para demonstrar que a ética e a moralidade na área pública são bandeiras estranhas à "causa". Não estão impressas em seu DNA. Isso ficou claro em 2005, quando ocorreu o escândalo do "mensalão". Os petistas, ficou demonstrado, não se incomodam em recorrer a expedientes antiéticos, desde que o façam para facilitar a implementação da "causa".

Nos dias que correm, já há intelectuais petistas que voltam a demonstrar o seu menosprezo original pelas bandeiras éticas. Alegam que ficar clamando pelo combate à corrupção é uma manifestação de moralismo "pequeno-burguês" e de "udenismo tardio".

É, no mínimo, curioso ouvir tais argumentos da boca de empertigados intelectuais petistas que, antes da chegada ao poder, eram os paladinos da caça aos corruptos e da introdução da ética na esfera pública.

Nós, os execráveis "pequenos burgueses", ao menos estamos onde sempre estivemos. Entendemos que aqueles que se vendem não merecem ser comprados. E que os que entendem não ser possível ser políticos honestos que tratem de ser honestos sem ser políticos.

Nenhum comentário: