sábado, maio 30, 2009

RUY CASTRO

O biografado vivo

FOLHA DE SÃO PAULO - 30/05/09

RIO DE JANEIRO - Às vezes, me perguntam por que não escrevo biografias de gente viva. Respondo que o biografado vivo não é confiável -porque ele terá de ser ouvido e, ao ser entrevistado sobre si mesmo, mentirá para o biógrafo. Pior ainda, obrigará seus amigos a mentir sobre ele. Uma pessoa importante o suficiente para ser biografada em vida terá poder suficiente para fazer isso.
O biografado vivo é também impraticável, porque sua história ainda não terminou. Digamos que o ilustre já tenha para lá de 80 e sua vida pública esteja, para todos os efeitos, encerrada. Nem assim o biógrafo estará a salvo. De repente, com o oba-oba provocado pela biografia, o herói resolve voltar à ativa e, até por estar fora de forma, revela-se um tardio Drácula ou Jack, o Estripador. Pronto, lá se foi o livro para o vinagre.
Com o biografado morto e com a conta fechada, não há esse risco. Sabendo-se que uma boa biografia exige pelo menos dois ou três anos de trabalho, há poucas chances de qualquer coisa na vida do fulano, por mais grave, não vir à tona -nesse espaço de tempo, alguém deixará escapar até o segredo mais bem guardado. Não quer dizer que, quanto mais tempo leve o biógrafo, melhor ficará a biografia. Ao contrário: se levar tempo demais, o livro pode azedar.
Todas essas convicções perigam caducar com o lançamento em Nova York de uma biografia de Gabriel García Márquez pelo americano Gerald Martin. É um livro de 600 páginas, que o autor levou incríveis 18 anos para fazer e dos quais, segundo ele, só falou com García Márquez durante um mês. Não é uma biografia autorizada, diz Martin. No máximo, "tolerada".
A ver. O "New York Times" gostou, o que é bom sinal. Mas parece que García Márquez, vivo, aos 82 anos, também gostou. O que não é bom sinal.

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