quarta-feira, janeiro 21, 2009

ÉLIO GASPARI

Não eram sapatos gastos, eram História


O Globo - 21/01/2009
 

Naquela esplanada onde já houve um mercado de escravos, o movimento de quem chegava para a festa da posse de Barack Obama começou quando ainda era noite e a temperatura estava a sete graus negativos, suficiente para congelar a água das garrafinhas. Nada havia para fazer senão esperar várias horas. Mas aquela gente esperou séculos. 

Desta vez, no chão, a festa era deles, extensiva a quem fosse capaz de gritar "Obama" com um sorriso no rosto. Para Rodrick Moore, funcionário da Universidade da Carolina do Sul, foram oito horas de volante. Para Eivind Petersen, diplomata norueguês, enrolado num cobertor azul, foram oito horas de vôo. Fernando Souza, de Salvador, enrolado na bandeira brasileira, esperava o fim da cerimônia para voar de volta. 

Tanya Moore, estudante de ciências do laboratório no Ohio, tinha outra conta. Às oito da manhã, quando o sol já aparecera, ela informou: 

"Faltam quatro horas para George Bush ir embora." Repetiria o lance, com absoluta felicidade: "Faltam 45 minutos." Não havia lugar melhor para a contagem regressiva de Bush. 

Empossado na Presidência, Barack Obama fechou gloriosamente um ciclo da história americana que começou bem antes do nascimento do companheiro, quando uma vendedora chamada Rosa Parks entrou num ônibus, sentou no assento destinado aos brancos e não quis se levantar. Não há apenas um negro na Casa Branca, até porque o pastor Thomas Robb, diretor da Ku Klux Klan, já informou que ele "é só metade preto". 

Os negros americanos liquidaram a fatura. O presidente é negro. O procurador-geral também, bem como a embaixadora nas Nações Unidas. O trisavô de Michelle Obama foi escravo numa plantação de arroz. Os netos da geração que marchou (ou não) nos anos 60 tornaram-se parte da elite americana. Susan Rice, a embaixadora na ONU, é sobrinha-neta de Vernon Jordan, que em 1961 era um jovem advogado e escoltou a primeira estudante negra admitida por ordem judicial na Universidade da Geórgia. 

A meia hora de caminhada da escadaria onde Obama tomou posse, está guardado um par de mocassins com os saltos tipo anabella quase completamente comidos. Durante dez anos, aqueles sapatos ficaram em algum canto da casa de uma professorinha negra de 25 anos, mulher de um militante que tomara 125 cadeias por conta das encrencas de Martin Luther King. Eram a um só tempo coisa velha e memorável. Um dia veio-lhe a ideia de oferecer os mocassins ao Museu de História Americana. E lá estão eles, com a informação: estes foram os sapatos que Juanita Williams usou na Marcha de Selma. 

Em março de 1965, Barack Obama ainda não completara quatro anos, viviam em Selma (Alabama) 15 mil negros, mas só 156 deles podiam votar. Uma primeira marcha andou seis quarteirões e acabou-se a cacetadas. Não adiantou. Duas semanas depois os negros marcharam por 80 quilômetros, durante cinco dias e quatro noites. Eram 300 na partida e foram 25 mil na chegada, na capital do estado. 

Os sapatos de Juanita eram um pedaço da História dos Estados Unidos e ela percebeu. Depois de Selma o presidente Lyndon Johnson pôs fim às chicanas eleitorais contra os negros e desafiou uma audiência usando o título de uma canção de protesto: "We shall overcame" ("Nós triunfaremos".) 

Estranho. Nas festas da posse de Obama evitava-se essa canção. Não precisava, pareceria provocação. Afinal: triunfamos.

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