terça-feira, maio 28, 2019

Virá, virá que eu vi (a revolução)! - FERNÃO LARA MESQUITA

ESTADÃO - 28/05

Vejo no entusiasmo por nossas instituições ‘estarem funcionando’ o problema, não a solução


As últimas semanas foram marcadas pelo debate apaixonado sobre se o povo sair às ruas para pressionar seus representantes a fazer o que ele quer é ou não (dependendo de quem marcha) um caminho para o fim da democracia, e pela disputa entre o Executivo e o Legislativo que, depois de usar a confusão como pretexto para desarmar Sérgio Moro, antecipou-se ao governo para propor “a sua” reforma tributária em vez da dele, disputa de que resultará, vença quem vencer, mais um pacote de imposições que o povo brasileiro inteiro terá de engolir exatamente como lhe chegar, sob as penas da lei.

Não contesto os doutos especialistas que analisam a questão à luz das instituições brasileiras mas não compartilho seu entusiasmo por elas “estarem funcionando”. Vejo nisso o problema e não a solução e acho que só aprenderemos algo de útil estudando como outras democracias resolvem essas coisas.

Um caso interessante está em andamento. Em 5 de novembro próximo o estado do Texas terá a sua “eleição de ano impar”. As majoritárias ocorrem nos pares mas ha eleições todo ano por lá, e até mais de uma se houver necessidade como, por exemplo, a de “deseleger”, por iniciativa popular, um deputado ou um juiz corrupto (ano passado West Virginia deu recall nos seis da sua Suprema Corte de uma só vez).

Sete questões qualificaram-se para subir às cédulas estaduais (o sistema é o distrital e dezenas de outras serão submetidas apenas aos eleitores de cada município e até de cada bairro do país no caso das eleições dos conselhos diretores das escolas públicas) pedindo um “sim” ou “não” aos texanos. São de iniciativa tanto de cidadãos comuns que coletaram o numero requerido de assinaturas, quanto do legislativo local que é obrigado por decisões anteriores a submeter a referendo questões como, por exemplo, todas as que envolvem impostos. A principal desta safra é uma destas. Reitera a proibição ao governo do Texas de cobrar imposto de renda de pessoas físicas e aumenta para ⅔ nas duas casas do legislativo (lá os estados têm câmara e senado) o quórum para alterar essa determinação. Até agora maioria simples bastava para que o legislativo, respeitosamente, submetesse pedidos para alterar impostos ao voto do povo.

Sete estados americanos proibem a cobrança de impostos estaduais sobre renda de pessoas físicas. O primeiro a cobrar um imposto assim (sempre depois de consulta popular) foi Wisconsin, em 1911, e o último New Jersey, em 1976. O governo federal sim, instituiu um imposto de renda sobre a pessoa física desde 1913 que é o principal imposto federal.

O legislativo estadual do Texas entrou em recesso ontem, 27, prazo limite para que outras propostas se qualificassem para ir a voto em novembro. As outras seis que passaram pedem um “sim” ou um “não” para: 1) autorizar o legislativo a aumentar a emissão de titulos para financiar o instituto estadual de prevenção do câncer, 2) aumentar as dotações para o fundo estadual de educação, 3) autorizar o mesmo funcionário a atender mais de um juiz municipal (os do nosso STF “têm direito” autoconcedido a 250 cada um só dele), 4) isentar de imposto metais preciosos depositados em bancos, 5) destinar obrigatoriamente para parques estaduais e manejo de fauna os impostos sobre equipamentos esportivos de caça e pesca, 6) determinar que quando for melhor para o animal os cachorros da policia morem com seus treinadores.

Como se pode ver por esta amostra literalmente tudo, na democracia americana, é decidido no voto, a começar por qual o modelo que cada estado ou município quer adotar para exercer esse direito fundamental, sendo os legislativos meros escritórios de acabamento técnico das leis propostas e/ou aprovadas pelos eleitores.

Lá, portanto, o povo vai, sim, às ruas, e a toda hora. Apenas teve a inteligência de institucionalizar suas manifestações. Vai só para colher as assinaturas necessárias para obrigar o governo, sob as penas da lei, a fazer o que ele quer do jeitinho que ele quer.

Quanto a impostos, então, eles são radicais. A democracia 3.0 (depois de Atenas e Roma) começou a nascer com o mote “no taxation without representation” que mobilizou os americanos à guerra da independência contra a Inglaterra (1775-1783). É a mesma ideia que, na mesma época, moveu o nosso Tiradentes (morto em 1792) e demais conjurados “das minas geraes” (cujos emissários estiveram em Paris conspirando com Thomas Jefferson) a insurgirem-se contra Lisboa poucos anos antes do Rio de Janeiro ser invadido pela corte portuguesa que transplantou inteiro para cá o modelo europeu de corrupção sistêmica pelo loteamento e “privatização” dos pedaços do Estado que está aí até hoje e fez da Cidade Maravilhosa e seu entorno continental isto em que nos transformaram.

O sentido geral do slogan é que os governos não podem criar nem alterar impostos sem perguntar antes a quem vai pagá-los o que acham disso, e transformou-se numa das pedras angulares da evolução para a democracia 4.0, já na virada do século 19 para o 20, quando ficou tão claro para os americanos quanto está hoje para os brasileiros que o sistema de pesos e contrapesos inventado pelos fundadores da democracia deles era totalmente insuficiente para evitar que os representantes eleitos traíssem os seus eleitores para dividir entre apenas alguns o que é de todos. Foi quando copiaram o sistema inventado pelos suíços que reafirma o eleitor como instância máxima do sistema, acima de todos os outros poderes da republica, e arma a sua mão para exercer essa hegemonia com os poderes de retomada dos mandatos dos funcionários públicos e representantes eleitos a qualquer momento (recall), referendo das leis dos legislativos e iniciativa na proposição de leis que os legislativos ficam obrigados a acatar, a reforma que fez deles (assim como fizera dos suíços) a potência que são hoje.

Tudo isso parece um sonho impossível visto aqui deste nosso brejo? Pois é não desanimar porque esse jogo, como os de futebol, “só acaba quando termina”.

Dança com lobos - JOÃO PEREIRA COUTINHO

FOLHA DE SP - 28/05

Alguém acredita que, escondendo as presas, os lobos deixam de ter fome?


Ter coragem é uma das virtudes principais. Assim falava Aristóteles. E assim falo eu, que sempre pensei no assunto de forma obsessiva.

Vamos imaginar que era possível recuar até 1940. Eu, gentio e ariano, estaria na Alemanha. Ou na Polônia. Ou na Hungria. Tudo lugares infrequentáveis.

Perante a perseguição nazista aos judeus, estaria eu disposto a arriscar a pele para ajudá-los? Para escondê-los? Para alimentá-los?

Aqui entre nós, é a única questão que interessa a um nível pessoal. Sabemos que existiram monstros no Holocausto. E também sabemos que existiram heróis —300 mil judeus seriam salvos pela ação individual desses heróis.

Mas a vida não é feita de anjos ou diabos. É feita de pessoas comuns —a maioria. Existe uma literatura vasta sobre a ética dos “bystanders”, os observadores, os que ficaram a olhar —ou, pelo contrário, que desviaram o olhar— quando os seus vizinhos desapareciam a meio da noite.

E, entre os “bystanders”, não é possível jogá-los a todos na mesma sacola de culpabilidade moral. Anos atrás, David Jones publicou o seu “Moral Responsability in the Holocaust” e encontrou três grupos.

Primeiro, os que tiveram justificação para não ajudar (sobretudo alemães ou poloneses que temiam pela sua vida e pela vida da sua família). Seria indigno julgar a atitude dessas testemunhas aterrorizadas.

Depois, existem os que tiveram fraca justificação para não ajudar (populações civis que viviam fora do vespeiro alemão-polonês-húngaro e que poderiam ter feito mais). Falamos da maioria da população europeia, incluindo aqui países neutros como Portugal ou Espanha.

Finalmente, existem aqueles que não têm justificação para não terem ajudado (foram covardes, indiferentes ao sofrimento alheio ou simplesmente cúmplices).

Alguns, aliás, chegaram a tirar fotos: em Amsterdã, até o dia 6 de outubro, uma exposição no Museu Nacional do Holocausto apresenta esses retratos. Retratos banais, tirados por gente banal, que imortalizou em imagem as vítimas desse tempo.

Algumas das fotos foram tiradas atrás do vidro de uma janela, sei lá com que estado de espírito (medo? terror? curiosidade?). E as vítimas, do lado de fora, alinhadas para transporte, alinhadas para um triste destino. Que faria eu? E que faria o leitor? Tiraria fotos? Ou estaria pronto para ajudar por outros meios?

A pergunta não é meramente teórica. Nem anacrônica. Ela regressa sazonalmente para nos testar. Um exemplo: informa o The Guardian que um comissário do governo alemão aconselhou os judeus do país a não usarem o quipá em público. Não é mais prudente.

As intenções do sr. Felix Klein são meritórias: o antissemitismo cresce na Alemanha (e na União Europeia) de forma acentuada. Usar o quipá ou qualquer outro símbolo judaico é um “convite” para os crimes de ódio.

Moral da história: a mesma Alemanha que obrigava a população judaica a identificar-se em público com simbologia adequada opta agora por aconselhar a invisibilidade. Em ambos os casos, o que falha?

Precisamente: a vontade e a capacidade políticas de proteger essa comunidade pela força do Estado e da lei. Sem compromissos de qualquer espécie. E até quando?

Sim, até quando essa espécie de covardia moral é sustentável? Será que alguém acredita que, fechando os olhos e escondendo as presas, os lobos deixam de ter fome?

Essas perguntas são decisivas no momento presente, quando o antissemitismo europeu é alimentado por três correntes ideológicas aparentemente distintas.

Pela extrema direita, que cresce eleitoralmente no continente (basta olhar para as últimas eleições europeias) e que só na Alemanha é responsável pela maioria dos crimes antissemitas.

Pela extrema esquerda, que retoma o espírito e a letra dos “Protocolos dos Sábios do Sião” (o infame documento forjado pela polícia czarista no século 19 para justificar os “pogroms” antissemitas) para denunciar um novo complô judaico para dominação do mundo pela força da alta finança.

E pelo radicalismo islamita, claro, que nunca deixou de ler os “Protocolos” (os reais) e de agir em conformidade —no Oriente Médio ou na Europa.

Ninguém sabe como teria agido em 1940 e nos anos seguintes, quando os exércitos do Terceiro Reich já cobriam o continente.

Mas não haverá desculpa para a inação de 2019, quando a paz reina ainda sobre nós. Teremos coragem? E teremos vergonha?

João Pereira Coutinho
Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa

O limite entre as ruas e o governo - MIRIAM LEITÃO

O Globo - 28/05

As ruas são livres para gritarem o que quiserem, mas o governo não pode ecoar ou estimular os discursos extremos e antidemocráticos


Quem foi para a rua, mesmo para criticar as instituições democráticas, tinha o direito de estar lá. Na democracia, essa liberdade é consagrada. A questão a discutir não é o ato em si, mas toda a ambiguidade que está presente em alguns atos e palavras das autoridades. O presidente Jair Bolsonaro que considerou legítimas as manifestações de domingo chamou de “idiotas” os que fizeram os protestos do dia 15. São dois pesos, duas medidas. Ele não foi, mas deu um mote enviesado quando divulgou, dias antes, texto em que sugere que está sendo impedido de governar, e ontem ao falar que o movimento fora “um recado contra aqueles que teimam nas velhas práticas”.

Bolsonaro deixa subentendidos demais quando fala sobre a relação com o Congresso. Dá a entender que seus problemas são derivados de os políticos o estarem pressionando para usar a moeda da corrupção nas negociações para formar uma coalizão. E essa mensagem esteve presente nos atos de domingo, personificada no ataque direto ao presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia.

Já as críticas ao Supremo Tribunal Federal (STF) estiveram presentes até na boca de parlamentares do partido. O deputado estadual Filippe Poubel (PSL-RJ) repetiu a frase do terceiro filho do presidente, deputado Eduardo Bolsonaro: “Para fechar o Supremo só precisa de um soldado e um cabo.” O senador Major Olímpio (PSL-SP) ameaçou: “Nos aguarde STF.”

Isso não quer dizer que a maioria dos que foram às ruas tinha esse objetivo, mas o fato de ser dito em alto e bom som por parlamentares do partido do presidente não pode ser subestimado. A democracia aceita protestos contra as instituições que a sustentam, mas essas falas, entre tantas outras, mostraram que o governo Bolsonaro flerta frequentemente com a ameaça à democracia.

O país está diante de uma situação difícil. A economia não deslancha, a confiança dos empresários e operadores de mercado está em queda livre, as contas públicas estão com forte déficit. Além disso, é necessário passar pelo Congresso matérias complexas, como a reforma da Previdência, o crédito suplementar de R$ 248 bilhões, a mudança na lei de teto de gastos para permitir o acordo com a Petrobras e a distribuição dos recursos. Se não tiver um bom diálogo com o Parlamento, o Executivo pode enfrentar derrotas e alterações indesejáveis nos projetos.

A manifestação não foi tão grande que tivesse dado a Bolsonaro o capital político extra com o qual ele sonhava. Mas foi relevante. E poderia até fortalecer as reformas, se Bolsonaro demonstrasse empenho em construir uma maioria para aprová-las. Ele estimulou a ida às ruas para dar uma resposta aos protestos contra os cortes na educação. Não foi por entusiasmo com a mudança da Previdência. Como ele já disse várias vezes, se pudesse, não faria a reforma.

O grande problema tem sido a dificuldade de o presidente Bolsonaro entender que quem é eleito governa, quem não tem maioria tem que negociá-las, quem comanda o Executivo precisa defender seu projeto diariamente. Que as redes sociais sempre serão uma forma subsidiária de comunicação e que o tempo de suas declarações irresponsáveis — quando era apenas um parlamentar de desempenho pífio — encerrou-se quando foi escolhido para liderar o país nas últimas eleições.

Nas manifestações de domingo havia pessoas defendendo suas convicções. Excelente. Foi para isso que o país lutou contra o período ditatorial que por tanto tempo reprimia, muitas vezes com violência, qualquer passeata, e que editou um Ato Institucional que proibia reuniões políticas. A democracia aceita até que se manifestem os saudosistas do tempo em que a liberdade foi cerceada. Mas cabe às lideranças do país tomarem precauções para não incentivar um tipo de ataque às instituições como algumas que foram vistas nas ruas de domingo. Pedir o fechamento do Supremo, demonizar qualquer negociação política como sendo pressão pela “volta das velhas práticas”, afirmar, como fez Bolsonaro, que é preciso “libertar” o país é atravessar uma linha que não deve ser transposta numa República que teve duas ditaduras nos últimos 90 anos. Que as ruas falem sempre o que quiserem, mas que os governantes tenham a lucidez de não ecoarem os extremos.

"A Venezuela é logo ali - GUSTAVO NOGY

GAZETA DO POVO - PR - 28/05

Enquanto o presidente tenta, por uns momentos, apaziguar os ânimos e amenizar o discurso, Carlos Bolsonaro, porta-voz oficial da insanidade, se esmera no contrário. Para ele, uma “minoria” quer atrasar o país. De que minoria ele fala: Congresso? STF? Oposição? Imprensa? Qualquer um que não tenha fé na chegada do Messias?

Mais uma vez o dublê de ministro e vereador nas horas vagas nos lembra da ameaça venezuelana, como se ainda estivéssemos em perigo iminente. Pergunto: há novas eleições marcadas para outubro? Respondo: não. Portanto, terminada a campanha, findo o escrutínio, renovado o Congresso, defenestrado o Renan Calheiros, derrotado o PT, eleito o Jair Bolsonaro, a tal ameaça de nos transformarmos numa Venezuela só existe se Bolsonaro quiser que exista.

É bastante curioso, aliás, que o exemplo da Venezuela seja um grande dedo apontado sempre e somente contra PT, mas nunca na direção oposta. Considerem o seguinte.

A Venezuela não se tornou Venezuela apenas por ser um projeto socialista – e é. Os métodos usados por Chávez e Maduro podem se adaptar a outras paragens e são aflitivamente semelhantes à reivindicação de muitos patriotas de verde-amarelo. Esqueçamos por um momento a farda ideológica do regime de Chávez e Maduro. Consideremos os procedimentos.

Os procedimentos quais foram? Subjugar o Congresso e os tribunais superiores, dificultar o trabalho da imprensa e inviabilizar a oposição organizada. Congresso, tribunal, imprensa e oposição são os bodes expiatórios de todo projeto autoritário e iliberal. Alguma vaga semelhança com certo país tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza?

O autoritarismo se constrói suprimindo o poder real de negociação dos outros poderes e a medição das instituições. O PT privatizou o Congresso com o Mensalão e o Petrolão; é um jeito de solapar a democracia. O outro jeito, ligação direta ao ataque, é acuar o Congresso e fazê-lo obediente ao Executivo. É isso o que Carlos Bolsonaro sugere? É isso o que muitos como ele desejam? Com a palavra, a maioria de bem contra a minoria do mal.

Aprendi a nunca duvidar de nenhuma desgraça política, e a Venezuela é logo ali. O caminho da perdição é bem pavimentado e a porta do inferno é larga, enquanto a da democracia é estreita e dificultosa. Mas, por isso mesmo, é fundamental que ninguém se esqueça: mais de um caminho pode nos levar à Venezuela. “Aonde querem chegar?”"

O voto tem consequências - HÉLIO SCHWARTSMAN

FOLHA DE SP - 28/05

Sabemos desde Platão que o eleitorado é presa fácil para demagogos


Fica cada vez mais fundo o buraco em que o Reino Unido se meteu ao decidir pelo brexit. Com a renúncia de Theresa May, ampliam-se as chances de o país deixar a União Europeia sem nenhum tipo de acordo, o que seria desastroso para a economia.

Também fica maior a probabilidade de “remainers” encontrarem alguma brecha política ou jurídica para exigir um segundo plebiscito, que, na hipótese de produzir um resultado diferente daquele do primeiro, causaria danos para o mecanismo de consulta popular e, por extensão, para a própria democracia.

Como os britânicos puderam cair nessa armadilha? A triste verdade é que a democracia, em especial a democracia sem filtros, traz esses riscos. Nós sabemos desde Platão que o eleitorado é presa fácil para demagogos. O que a ciência política e a psicologia modernas fizeram foi descrever com minúcia os vieses pelos quais as pessoas se deixam levar, além das aporias irredutíveis de processos de decisão por maioria.

O curioso é que, apesar das possibilidades quase infinitas de a democracia dar errado, os países que a adotam estão no geral muito melhor do que os que a desprezam. Ao que tudo indica, ela funciona, mas não pelas razões que gostaríamos.

As virtudes da democracia não estão nas escolhas que ela gera, mas em efeitos secundários que vêm no pacote de produtos que costumam acompanhá-la. São itens como liberdades individuais, direito de propriedade, segurança jurídica e, também, a percepção de que a disputa pelo poder segue regras justas e que a parte derrotada não enfrentará ameaça existencial, podendo até vencer no próximo ciclo. Juntos, esses elementos costumam promover a moderação.

O problema do populismo é que, ao vender falsas soluções fáceis, ele desequilibra o jogo e pode colocar países em caminhos totalmente inadequados ou mesmo sem volta. Como os brasileiros estão descobrindo, o voto tem consequências.


"Centrão lidera uma boa reforma tributária, apesar do governo - PEDRO MENEZES

GAZETA DO POVO - PR - 28/05


República do Congo, Bolívia, República Centro-Americana, Chade, Venezuela e Somália. Esses 6 países, e nenhum outro, tem um sistema tributário pior que o do Brasil no ranking Doing Business, do Banco Mundial. É a nossa pior classificação. Mesmo nesse G6 da vergonha, nenhum país exige mais horas de trabalho para que se entenda como os impostos devem ser pagos. Somos campeões mundiais em burocracia tributária, os piores entre os piores.

Está tudo errado nesse front. Nossa carga tributária é alta e penaliza os mais pobres. Os impostos brasileiros desagradam capital e trabalho, sem preconceito ideológico. Pior: esse atraso nos condiciona a mais atraso. No Brasil, barganhar uma tributação especial junto ao governo é mais lucrativo do que produzir mais por menos. Cada hora de trabalho navegando pela burocracia poderia ter ido para a inovação, para o preço e qualidade que chegam ao consumidor.

O problema não é de hoje e motivou Bernard Appy a buscar uma solução. Ainda no governo Lula, ele – um economista remanescente da equipe liberal de Palocci – formulou uma reforma tributária em 2008, que fracassou no Congresso. O governo Lula desistiu do projeto. Bernard Appy, não.

Ao invés de sair da Fazenda para receber um gordo salário na Faria Lima, como é comum entre seus pares, Appy fundou um think tank, o Centro de Cidadania Fiscal, para entender o que deu errado na proposta de 2008 e aprimorar o projeto. Como o problema já era insustentável, uma reforma parecia inevitável.

Em pouco tempo, o projeto de Appy se tornou o mais discutido pelos interessados no assunto. No desenho, ele buscou corrigir problemas que travaram seu projeto no governo Lula, como atritos políticos gerados junto aos governadores.

A proposta do Centro de Cidadania Fiscal, em resumo, prevê a união de cinco impostos em um. IPI, PIS, Cofins, ICMS e ISS se fundiriam no IBS, o Imposto sobre Bens e Serviços. A proposta aproxima o Brasil do resto do mundo, onde a tributação do processo produtivo se dá por um imposto de valor agregado, o mesmo para todos setores.

Um trecho particularmente revolucionário da proposta é o que extingue os regimes especiais de tributação, responsáveis por muita burocracia e corrupção em nosso país. Com a facilidade para criação de regras especiais, fica difícil até saber qual regra se aplicada a cada empresa, e a atividade empreendedora é demasiadamente influenciada pela legislação. A proposta de Appy faz parte do que o economista Marcos Lisboa costuma chamar de “agenda republicana”, aquela que trata iguais como iguais.

Surpreendentemente, o sistema político convergiu pela proposta de Appy. Nas eleições do ano passado, todos os principais candidatos defenderam a criação de um imposto sobre valor agregado nestes moldes. Sim, leitor: a concordância unia Bolsonaro, Guedes, Haddad e o PT. Feito raro.

O governo poderia ter confirmado as expectativas da campanha, mas preferiu confiar sua reforma a Marcos Cintra, especialista respeitável e desatualizado que segue sonhando com o inviável imposto único federal. O pior erro da boa gestão de Guedes até o momento.

Felizmente, Rodrigo Maia viu a bola pingando e quis marcar. Um aliado, deputado Baleia Rossi (MDB), propôs uma PEC de conteúdo bastante similar à de Appy. A inspiração é livremente admitida. Acadêmicos e empresários já conheciam a proposta e deram apoio a ela. Sem a marca do governo, a resistência dos partidos de esquerda tem sido menor.

A CCJ da Câmara já aprovou a reforma tributária de Appy, Baleia Rossi e Maia. Sem a confusão vista nos debates da Nova Previdência, os parlamentares parlaram mais do que xingaram. O projeto está caminhando com certa celeridade.

O texto em discussão tem pontos que merecem discussão mais profunda, mas em geral é muito bom e superior às especulações de Marcos Cintra. A reforma tributária do governo nem chegou a sair do Planalto, portanto dificilmente chegará ao plenário do Congresso a tempo de derrotar a versão do Centrão. O que é bom, porque a reforma formulada por Appy foi melhorada por anos de debate da sociedade civil e é bem vista por economistas e políticos de vários partidos. Agora, o governo se vê com o calção no gramado, assistindo ao avanço de Maia e seus aliados que, depois do drible, querem comemorar o gol sozinhos em frente à TV. Bolsonaro ainda pode abraçar o projeto para tentar colar sua imagem. O importante mesmo é aprovar a reforma antes de correr para o abraço. Depois, os políticos que se digladiem pela paternidade dela. Só espero que alguém se lembre de agradecer a Bernard Appy."

Pacto nada! Bolsonaro quer é colar no Congresso e no STF a pecha de acuados - REINALDO AZEVEDO

UOL - 28/05

O presidente Jair Bolsonaro convidou os presidentes da Câmara, do Senado e do STF — respectivamente, Rodrigo Maia (DEM-RJ), David Alcolumbre (DEM-AP) e Dias Toffoli — para um café na manhã no Palácio da Alvorada. Estarão presentes também Onyx Lorenzoni, chefe da Casa Civil, e Augusto Heleno, do Gabinete da Segurança Institucional. A ideia seria estabelecer um pacto entre os Poderes em favor das reformas da Previdência e tributária, da revisão do pacto federativo, da desburocratização e de medidas em favor da Segurança Pública, segundo informa a Folha.

Entendi. Bolsonaro convoca seus radicais, eles vão às ruas, esculhambam os outros dois Poderes, o presidente os aplaude e ataca as tais "velhas práticas" da política, diz que Centrão é sinônimo de palavrão, ajuda a divulgar vídeos que atacam o STF e o Legislativo e, bem…, aí vem a proposta de um pacto.

Já vivi o bastante para saber que, por aí, nada acontece. Maia, o principal alvo dos ataques de rua, poderia até engolir brasa acesa. Mas e os outros parlamentares? O presidente do STF tem liberdade para definir a pauta, mas não tem como decidir os votos dos demais ministros.

Nem a retórica que sustenta o convite está ajustada. Bolsonaro está fazendo tal convite porque sabe que atravessou o samba e que o apoio à agressividade palavrosa oriunda das manifestações aumentou a tensão entre os Poderes em vez de diminuir. Rêgo Barros, que não tem voz própria e porta a voz do presidente, explicou a coisa assim:
"As manifestações são um sinal de que a sociedade não perdeu as esperanças e de que seus anseios serão escutados pelos dirigentes do país. Esta voz das ruas não pode ser ignorada. É hora de retribuirmos este sentimento. O que devemos fazer agora é um pacto pelo Brasil. Estamos todos no mesmo barco e juntos podemos mudar o país".

Entendi. Então quem está convocando os respectivos presidentes das duas Casas do Congresso e do STF são as ruas? Mas esperem: nesse caso, Maia, Alcolumbre e Toffoli, que presidem entes que dizem respeito a todos os brasileiros, devem ignorar as ruas no dia 15? Ou aquelas vozes não valem?

Bolsonaro até agora não entendeu que ele é presidente de todos os brasileiros — inclusive dos que não votaram nele. E os outros três comandam Casas que pertencem ao conjunto da população; não são líderes de facções ou de milícias. Nem Bolsonaro deveria sê-lo.

Pacto com o quê? Bolsonaro nem mesmo consegue, em benefício do governo, fazer com que senadores com ele alinhados optem pela coisa certa no Senado no caso do destino do Coaf.

Um pacto supõe uma pauta, um comportamento e um compromisso. Ocorre que nunca se sabe quando Bolsonaro pode transformar aliados em inimigos.

Ne novo, vem a pergunta legítima: se, correndo hoje tantos riscos, como o de a MP 870 caducar, Bolsonaro trata os demais Poderes aos tapas, por que os trataria aos beijos caso venha a conseguir as coisas que deseja?

Dada a retórica do porta-voz, o presidente quer forçar a mão para consolidar a versão de que as ruas intimidaram Legislativo e Judiciário. O encontro, dois dias depois das ofensas disparadas, passa a impressão de que Maia, Alcolumbre e Toffoli estão com medo.

Bolsonaro não quer, de fato, café da manhã com ninguém. Ele chamou os homens que comandam o Legislativo e o Judiciário para tentar colar neles a pecha de acuados pelas ruas — que, no caso, são as ruas bolsonaristas.

Até porque, num pacto, as pessoas sempre cedem. Bolsonaro estaria disposto a ceder em quê?

O plebiscito permanente do bolsonarismo - CARLOS ANDREAZZA

O GLOBO - 28/05

Não acredito, por óbvio, na viabilidade desse norte plebiscitário


Não importa o volume das manifestações governistas de domingo. Avalio que foram de porte razoável e de caráter nacional tanto quanto expressivas de uma mentalidade autoritária, resumida no ataque direto ao Parlamento — motor original dos atos e ímpeto antidemocrático cujo propósito, apesar da competente campanha que tentou limpar a barra pesada das convocações, não se conseguiu disfarçar: o de esmagar o Legislativo sob a convicção de que o Congresso, o inimigo, sindicato do crime, seja poder menor destinado a mero despachante dos desejos do governante popular, um imperador eleito, um guerreiro de todos os lados acossado pelo monstro chamado establishment.

O tamanho e a representatividade dos protestos, porém, sempre independerão dos fatos, matéria que são para guerra de versões. Como escrevi: não importa. O que interessa tampouco deriva do sucesso populacional das manifestações e da qualidade de suas pautas — e pode ser resumido numa pergunta: em que os atos contribuem para a agenda de um governo que se vende como reformista e que, para ter êxito na empreitada, necessitará de mínima estabilidade? Mais precisamente: qual a aposta contida em dar vazão — com estímulo oficial desde o Planalto, inclusive do presidente — a uma estratégia de intimidação contra um Poder da República do qual o Executivo precisará?

Nesta altura, só uma questão resta — dado que o erro político está cometido: o quanto tamanha burrice atrapalhará. Como recado ao ingênuo que espera alguma perspectiva de equilíbrio para se planejar, a estupidez patriota é clara: o governo, dirigido pela força reacionária bolsonarista, escolheu a campanha permanente e não perderá chance de plantar polarizações. É caminho tomado por quem desconhece a história ou se julga habilitado a desafiá-la: um governo que se move sob linguagem de oposição, ainda aos cinco meses, apostando em apoio popular constante, é um que cansa e se cansa.

O bolsonarismo investe na fundação de uma cultura plebiscitária como mecanismo para esvaziar-desqualificar o Congresso e anabolizar um canal de comunicação direta entre líder carismático e povo. É fetiche totalitário antigo e que tem exemplo recente na Venezuela — um país de instituições devastadas pela imposição populista dos governantes e que expõe sua paralisia em disputas tribais sobre quem reúne mais esfomeados na rua.

Não acredito, por óbvio, na viabilidade desse norte plebiscitário: porque o Brasil não é a Venezuela e tem a faca afiada (e prática) de um mercado que compra (pagou caro por Bolsonaro) tão rápido quanto vende (barato) se diante de uma alternativa de negócio; porque a população, saturada de discurso político-eleitoral, elegeu Bolsonaro, um forte, para resolver o problema, e não para se apregoar vítima e pedir socorro; porque o povo não tarda a perceber que essa batalha partidária nas ruas equivale a país travado (um que não gera empregos); e porque não há quem, não sendo fanático ou estando a serviço, cegue-se longamente em fumaça que pretenda camuflar incompetência.

O governo Bolsonaro tem natureza — a imprevisibilidade — avessa ao princípio básico do que seja governar, o que é agravado pela alarmante incapacidade de gestão. E o investimento permanente em conflitos, essa verdadeira forja de crises institucionais que anima o bolsonarismo, apenas radicalizará o que é óbvia constatação: a de que um programa de reformas liberais, como o de Paulo Guedes, não tem meios de prosperar, senão modestamente, num ambiente de instabilidade como regra.

A reforma da Previdência já passou, será aprovada, e será razoável, independentemente de governo — e essa também é mensagem captada por quem gira a roda do dinheiro. Mas: e depois? Qual a força política — para concretizar a retórica reformista estrutural — de um governo que veste a antipolítica, que se pensa eleito para ser uma nova etapa da Lava-Jato e que considera a formação de base de apoio parlamentar uma atividade criminosa, o que significa informar ao mundo que fará “articulação” (com quem considera bandido) caso a caso, projeto a projeto, multiplicando confrontos como os vistos até agora? Não é sustentável.

O mercado financeiro, fiador de Bolsonaro como alguém domável pela razão produtiva, já mediu e pôs preço na limitação incontornável do presidente, e está ávido por embarcar na engenharia que se projeta para minimizar o prejuízo e tocar a canoa da administração de danos até 2022: o parlamentarismo informal que parece unir “governo Guedes” e o poder moderador em que consiste o Congresso, uma costura que se dedicaria a um pacote enxuto de reformas econômicas e que ceifaria — ceifará — a agenda de costumes que dá identidade ao bolsonarismo.


Das ruas, Bolsonaro só ouve a voz que lhe convém - RANIER BRAGON

FOLHA DE SP - 28/05

Para presidente, povo se resume a quem vestiu verde e amarelo no domingo


Ao se fiar nas manifestações de Jair Bolsonaro durante e após os atos de domingo (26), o presidente acredita que o povo brasileiro se resume aos que saíram a público com a camisa da seleção. Das ruas, Bolsonaro só escuta o que lhe convém.

O mar de gente que entupiu espaços públicos em 15 de maio nos protestos pela educação —em mais cidades e, na maioria delas, em número superior ao deste domingo— não é povo, mas idiotas, imbecis, inocentes nas mãos da corja do apagador e giz.

É melhor nem discutir o que pensam os que ficaram em casa ou foram ao Maracanã ver o Flamengo, por exemplo. Por 28 anos deputado, Bolsonaro age como se ainda fosse um deles, a representar um segmento muito específico da população.

Afinal de contas, o que quer o povo brasileiro? Qual é a voz das ruas?

Certamente não é uma só, nem duas, nem três. E nem de longe se resume aos verde e amarelo de domingo —os quais, tirante uma ala sequiosa por quarteladas e outras delícias vindas das trevas, têm o direito de serem ouvidos e representados.

Curiosamente, até em relação a esses Bolsonaro pratica audição seletiva. A tarefa de manter o Coaf com Sergio Moro, por exemplo, foi abandonada pelo governo há tempos, posição reiterada nesta segunda (27).

Os atos de domingo não espelham de forma fiel nem mesmo os 57,8 milhões que votaram em Bolsonaro no segundo turno. Ele foi eleito por pessoas movidas por uma miríade de sentimentos, muitas já decepcionadas com o que estão vendo.

Isso sem falar nos 47 milhões que votaram no PT e nos 11 milhões que rejeitaram tanto um quanto outro —contingente maior do que os que elegeram o presidente. Não são povo?

Mesmo o ato governista não tendo superado o da educação —e isso na “lua de mel” da gestão—, Bolsonaro escora-se nele para, malandramente e com falso ar contrito, propor um “pacto” com os outros Poderes.

Quer que todos eles ouçam a mesma “voz das ruas” que ele diz escutar. Resta saber quem está disposto a cair em mais esse conto do vigário.

Ranier Bragon
Repórter especial em Brasília, está na Folha desde 1998. Foi correspondente em Belo Horizonte e São Luís e editor-adjunto de Poder.

Lista do MP ameaça reformas - PEDRO NERY

O Estado de S. Paulo - 28/05

Relação tende a transformar o novo procurador-geral no anti-Paulo Guedes



Em meio a uma árdua agenda de reformas, o novo procurador-geral da República tende a ser um antiPaulo Guedes. Ele questiona o déficit da Previdência, vê na reforma um corte radical de gastos e alerta que não deve se sustentar no Judiciário. Foi militante do auxílio-moradia, alega que o teto de gastos é inconstitucional e considera a reforma trabalhista grave retrocesso. Ele é um dos favoritos para vencer em junho a eleição para procurador-geral da República (PGR).

Ele é o procurador José Robalinho, candidato na lista tríplice para PGR organizada pela Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR) – presidida por ele próprio até o início do mês. O favoritismo decorre de o líder sindical fazer a mesma trajetória de outros vencedores.

Os últimos procuradores-gerais Rodrigo Janot e Roberto Gurgel também foram presidentes da ANPR antes de vencerem a sua eleição. Na última lista tríplice, venceu o ex-presidente Nicolao Dino (preterido no cargo pela vice, Raquel Dodge).

Poderia ser a vez de Robalinho, que nos últimos anos assinou um conjunto de notas contra qualquer esforço importante de reforma. Como PGR, opinará sobre todas as ações contra as reformas no STF e poderá ele próprio propor ações de inconstitucionalidade. A posição do PGR é altamente correlacionada com as decisões do Supremo.

Robalinho é contundente. Sobre a Previdência: “injustiça profunda contra servidores, não se sustentará perante o Judiciário, fique alerta o País disso”, “agressão à Constituição e fonte inesgotável de judicialização”, “comprometimentos de direitos sociais”. Sobre a trabalhista: “maior projeto de retirada de direitos”, “ataque”, “irreparáveis inconstitucionalidades”, “retrocessos de toda espécie”. Sobre o teto: “INCONSTITUCIONAL porque viola cláusulas pétreas”.

As justificativas das notas da ANPR flertam com o obscurantismo do WhatsApp, quando se sugere que o déficit da Previdência não existe, que metade da arrecadação vai para a dívida pública ou que ela nunca foi auditada.

É legítimo que uma liderança sindical adote essa pauta, porque trata das aposentadorias, salários e auxílios de seus associados. O impressionante é que esses associados possam escolher seus líderes sindicais como chefes do Ministério Público.

A principal qualidade apontada da lista tríplice é a escolha de um PGR independente. Mas independente de quem? Não dos eleitores. Na última eleição, candidatos chegaram a discutir como driblar a Lei de Responsabilidade Fiscal para aumentar rendimentos e até como pagar auxílio-moradia para ex-procuradores. A reputação do MP, o fiscal da lei, se contamina com esse corporativismo tribal.

A candidatura Robalinho é emblemática, mas o problema da lista tríplice é mais amplo: a incompatibilidade de escolher o guardião dos interesses difusos por um interesse organizado. Mesmo o sóbrio Mário Bonsaglia, outro favorito e único remanescente da última lista, falou aos associados taxando a reforma da Previdência de muito drástica e assustadora: “restringe direito de milhões”, entre outras falas.

A lista tende a transformar o procurador-geral da República no anti-Paulo Guedes. A árdua aprovação das reformas no Parlamento pode ser depois desperdiçada no 3.º tempo.

Entre as reformas cujo destino dependem do próximo PGR estão da Lei de Responsabilidade Fiscal (a redução da jornada de servidores que poderia ajudar a salvar Estados está suspensa por liminar há mais de dez anos, com apoio do MP) à carteira de trabalho verde e amarela, proposta de Guedes contra a chaga do desemprego jovem (a reforma trabalhista de 17 teve ferrenha oposição do MP do Trabalho e foi só em parte respaldada por Dodge: ainda pena com insegurança jurídica à espera do aval do STF).

Os interesses difusos de massas desorganizadas como os contribuintes, os herdeiros da dívida e os desempregados precisam especialmente da saída do nó fiscal. E esse é fundamentalmente um problema de folha de pagamento, em que as soluções colidem com os desejos da corporação que escolhe o PGR.

As reformas se beneficiariam muito de uma visão esclarecida e solidária do Ministério Público, nos moldes da importante atuação do órgão na área ambiental: contra grupos de interesses organizados no presente, em benefício de interesses difusos e futuros. Uma multidão de brasileiros precisa da força do órgão com a missão constitucional de defendê-los: não existe a associação nacional dos desalentados, a associação de pagadores do déficit da Previdência ou a associação de crianças excluídas do orçamento. O Ministério Público é grande demais para ser tão pequeno.

Sem carta branca - MERVAL PEREIRA

O GLOBO - 28/05


Manifestações não foram desprezíveis mas não suficientes para levar presidente a ter poderes acima de Congresso e STF

A relação do presidente Jair Bolsonaro com seus assessores militares, além da amizade com a maioria, e do respeito à hierarquia inerente à corporação – o presidente da República é o Comandante em Chefe das Forças Armadas – tem um ingrediente especial: o respeito pela sua vivência na vida partidária dentro do Congresso.

Quando algum assunto relativo à política está sendo tratado, Bolsonaro é direto com quaisquer de seus interlocutores militares e civis não políticos: “Quem entende de política aqui sou eu”.

Os militares são os mais impressionados com essa habilidade, pois, ao entrarem no ministério, entraram também em um mundo político que desconhecem.

Ao dizer que as manifestações de domingo foram “maiores do que se esperava”, o General Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), estava refletindo essa admiração pela atuação de Bolsonaro na arena política.

Para muitos que estão de fora, o presidente tem feito trapalhadas seguidas, sendo obrigado a se retratar e a voltar atrás frequentemente. Esses já são a maioria, segundo as pesquisas.

Os militares, no entanto, estão convencidos de que tudo não passa de uma estratégia muito bem montada por Bolsonaro. A força das manifestações de domingo demonstraria o acerto do comportamento errático do presidente.

Um dia replicou em seu twitter convocação para as passeatas, quando elas ainda eram focadas em atacar o Congresso e o Supremo, defendendo até mesmo o fechamento das instituições simbólicas da democracia. No outro, orientou seus ministros e assessores a não irem às manifestações. E desautorizou usarem seu nome em reivindicações não democráticas.

A tática do morde e assopra, como agora, que se desculpou por ter chamado os estudantes que “idiotas inúteis”, seria uma maneira de manobrar entre os obstáculos políticos para chegar a um objetivo, no caso, a aprovação da reforma da Previdência.

Da mesma maneira, as freqüentes gafes que comete, como se reunir com ministros usando uma camisa do Palmeiras, ou servir pão com leite Moça para o secretário de Defesa dos Estados Unidos John Bolton, fariam parte de um jogo de cena para manter sua imagem popular.

Parecido com Jânio Quadros (olha ele aí novamente), que comia sanduíche de mortadela em público, ou espalhava caspa no terno. Collor também usou esse estratagema.

No domingo, Bolsonaro conseguiu o que os dois tentaram em vão. Jânio renunciou pensando que o povo o levaria de volta ao governo. Collor pediu para saírem de verde e amarelo, e todos saíram de preto. Bolsonaro conseguiu uma vitória parcial.

As manifestações não foram desprezíveis, como ressaltou o General Heleno, mas não foram suficientes para levá-lo a ter poderes acima do Congresso e do Supremo Tribunal Federal (STF), que continuarão, como a imprensa, a fazer o papel de contraponto ao poder do Executivo.

Haveria outros objetivos, de maior profundidade, como a tentativa de impedir a política de troca de favores com os parlamentares, e fazer o enfrentamento das corporações que dominam o espaço público a seu favor. Logo ele, representante do “baixo clero” que passou 28 anos na Câmara defendendo corporações militares e assemelhadas, e convivendo com a “velha política” sem denunciá-la.

Apesar de ser uma figura tosca, verborrágica, contraditória, Bolsonaro estaria sendo útil ao país ao emparedar e pressionar a classe política. Deixando o poder e seus beneficiários expostos

Esse comentário interessante, que recebi de um leitor, resume a opinião de vários outros. O resultado prático pode ser esse, mas, no entanto não é confirmado, pelo menos integralmente, pela prática presidencial.

A partir da escolha de ministros por critérios ideológicos, e não técnicos. E de decisões que levam em conta esses interesses ideológicos, como no caso do meio-ambiente, contra posições já sedimentadas nas maiores democracias ocidentais. Ou no caso da liberação de armas.

O combate à corrupção é contraditório, quando um filho senador está envolvido em diversas denúncias, que transbordam para o próprio Bolsonaro. Ou quando o ministro do Turismo, acusado de ter usado “laranjas” para desviar recursos da campanha eleitoral, é claramente protegido pelo presidente.

Os embates com os poderes constituídos da República, que limitam suas ações, seriam mais a demonstração da incapacidade de Bolsonaro de agir dentro dos parâmetros constitucionais do que intenção de moralizar o país. As ruas, no entanto, não lhe deram essa prerrogativa.

O bolsonarismo existe - ELIANE CANTANHÊDE

O Estado de S. Paulo - 28/05

A existência do bolsonarismo projeta o antibolsonarismo e até o seu líder: Rodrigo Maia


O principal resultado das manifestações de domingo foi confirmar que a eleição de Jair Bolsonaro à Presidência não foi só um episódio e que o bolsonarismo vingou. Ocupou um vácuo político na campanha e se consolida com a rejeição ao que o próprio presidente chama de “velha política” e os seus filhos e os olavistas desdenham como “establishment”, mas tem um nome: instituições, à frente os Poderes da República.

O bolsonarismo fecha os olhos, os ouvidos e a razão ao despreparo e aos erros crassos de Jair Bolsonaro 
em nome de “algo maior”: uma ideologia, o conservadorismo de costumes, as reformas liberais (que, aliás, vários outros candidatos defendiam) e o combate ao crime (que eles também pregavam), mas a liga mais poderosa é a rejeição contra o Congresso, o Supremo, a mídia. Ou seja, o “sistema”.

A economia derrete, mas o presidente dá prioridade a armas e transforma suas crenças pessoais em política de Estado, contra a defesa do meio ambiente, as universidades, as pesquisas, a área de Humanas. E ele rechaça os políticos, mas dá um excesso de poder nunca visto aos próprios filhos – aliás, políticos, um deles enrolado com um esquema no Rio que pode ser tudo, menos uma saudável “nova política”.

Bolsonaro já derrubou ações da Petrobrás, criou sobressaltos na CEF, assustou a comunidade internacional, gerou temores na China e no mundo árabe e se mete despudoradamente nas eleições da Argentina.

O bolsonarismo, porém, não está nem aí para isso. Prefere acreditar, e alardear pelas redes sociais, que é tudo fake news, perseguição de uma imprensa esquerdista e mal-intencionada. O que importa para o bolsonarismo não é Bolsonaro, é o que ele representa. Bolsonaro é fraco, mas a simbologia (ou o marketing) dele é forte.

Quem foi às ruas no domingo, em mais de 150 municípios, de todas as unidades da Federação, comprou a ideia de que ele é como um Dom Quixote contra os males e os maus do Brasil. Mas eles precisam tomar cuidado. A existência do bolsonarismo automaticamente projeta o antibolsonarismo. Manifestações a favor (aliás, inéditas em início de governos) chamam manifestações contra. Isso significa uma polarização perigosa: o “nós contra eles” da era do PT, com o sinal contrário.

As multidões de domingo foram uma demonstração de força e produziram fotos poderosas, mas elas já lançam até os potenciais líderes de hoje e do futuro. Quem desponta entre os bolsonaristas é Sérgio Moro, mas ele é muito além disso: rechaçado por petistas, é endeusado por diferentes frentes e setores da sociedade.

E quem surge no horizonte para comandar o antibolsarismo? O presidente da Câmara, Rodrigo Maia. Quanto mais o bolsonarismo eleger Maia como inimigo número um, mais ele ganha força no antibolsonarismo, difuso e ainda confuso, mas real.

Maia e o DEM, porém, devem se descolar o quanto antes do Centrão, que Jair Bolsonaro chama de “palavrão” e transformou, habilmente, na síntese de tudo o que há de ruim, de podre, de execrável na política. Apesar de ter sido filiado a siglas que são, ou bem poderiam ser, desse bloco, como PP, PTB, PRB e o próprio PFL, que deu origem ao DEM de Rodrigo Maia.

Outra ironia nessa história é que Centrão e bolsonarismo estão unidos em torno de pelo menos uma bandeira: a reforma da Previdência. Nunca se viu manifestação a favor da reforma, só contra. Pois, agora, os bolsonaristas nas ruas e o Centrão no Congresso é que vão aprovar a reforma e garantir não apenas a aposentadoria das novas gerações, mas também as chances de recuperação econômica do País. Tudo o que Bolsonaro precisa fazer é não atrapalhar. Ou parar de atrapalhar.

É hora de governar - EDITORIAL O ESTADÃO

O Estado de S. Paulo - 28/05


Após as manifestações do último domingo, Jair Bolsonaro deveria aproveitar essa segunda oportunidade que seus eleitores lhe deram para, enfim, fazer política e governar o País.


As manifestações de domingo passado em defesa do governo ocorreram de maneira ordeira, sem incidentes de maior gravidade e, principalmente, sem a radicalização que tanto se temia. O discurso predominante não foi o da minoria extremista que, às vésperas das passeatas, pregava o fechamento do Supremo Tribunal Federal e do Congresso. Foram às ruas brasileiros interessados em reafirmar a importância das pautas que decidiram as eleições do ano passado, tais como a moralização da política e o combate ao crime. Houve ainda forte defesa da reforma da Previdência, o que é fato raro de ver em manifestações populares.

Espera-se que o presidente Jair Bolsonaro não tome esses protestos como uma espécie de carta branca para ampliar sua força na tumultuada relação com o Congresso, até porque o comparecimento não foi tão estrondoso como seus seguidores mais radicais esperavam. Mas é inegável também que essas passeatas, cuja afluência não foi nada desprezível, podem funcionar como uma espécie de confirmação da legitimidade de Bolsonaro obtida nas urnas no ano passado.

Nesse sentido, o presidente deveria aproveitar essa segunda oportunidade que seus eleitores lhe deram para, enfim, fazer política e governar o País.

Há toda uma agenda de reformas e de modernização à espera de um governo que, malgrado as limitações naturais da conjuntura e os gigantescos obstáculos gerados pela grave crise nacional, tenha a capacidade de articular as forças políticas necessárias para a resolução dos muitos problemas do País. Os milhões de votos depositados nas urnas para eleger Bolsonaro e mesmo os milhares de manifestantes que foram às ruas no domingo para defendê-lo não bastam para que os projetos do governo sejam aprovados no Congresso – cujos integrantes gozam da mesma legitimidade eleitoral do presidente.

Bolsonaro cometerá grave erro se, no embalo das ruas, continuar considerando que aos parlamentares só cabe chancelar o que o Palácio do Planalto lhes encaminha, sem a necessidade de diálogo. Deve o presidente convencer-se, rapidamente, de que discursos inflamados e xingatórios pelas redes sociais não são fatores de articulação de políticas governamentais.

É preciso que o presidente se recorde de que, há poucos dias, houve outra ampla manifestação nas ruas, esta contra o governo, e tais vozes são tão importantes quanto aquelas que lhe prestaram homenagens no domingo passado. Do mesmo modo, se há parlamentares e partidos que fazem objeções aos projetos governistas submetidos à Câmara e ao Senado, estes não podem ser tratados como inimigos ou tachados como interessados somente em auferir lucros pecuniários e políticos na negociação com o governo.

Poucas vezes a política foi tão necessária na história recente do País. Nunca é demais lembrar que a reforma da Previdência, malgrado sua urgência, deve ser apenas o início de um amplo processo de mudanças com vista a ensejar uma retomada do crescimento que, finalmente, comece a tirar o Brasil da sua persistente mediocridade. Nada disso será alcançado sem contrariar as corporações que capturaram o Estado para a satisfação de seus interesses, e para isso será preciso arregimentar democraticamente as forças dispostas à articulação de um consenso mínimo.

Bolsonaro precisa estar à altura desse desafio. O presidente não pode se contentar apenas em passar à história como aquele que derrotou o PT; essa condição era necessária para o saneamento da economia e a moralização da política, mas está longe de ser suficiente. Se Bolsonaro está realmente tão interessado em defender o interesse público e modernizar o País, deve ajudar a restituir à política a relevância que os anos de malfeitos e demagogia lulopetistas tiraram.

Para começar, deve parar de dividir o País entre “nós” e “eles” – isto é, deve parar de estimular a hostilidade contra os que dele discordam, como faziam os petistas. A essência da política é alcançar consensos em favor do interesse público, e isso implica fazer concessões e aceitar as divergências. Acima de tudo, porém, fazer política significa trabalhar duro, concentrar energias na negociação com o Congresso e juntar forças para formar uma boa base governista, capaz de aprovar as reformas – pois a multidão pode até impressionar, mas só em ocasiões revolucionárias aprova ou rejeita projetos em curso no Congresso.

Os medos reais que Black Mirror inspira - JOÃO LUIZ ROSA

Valor Econômico - 28/05

Tecnologias ameaçadoras não são coisa do futuro


É curioso como obras de ficção científica frequentemente tratam o ser humano como vítimas que são subjugadas por suas criações de perder o controle de experiências científicas ou tecnológicas. É essa a ideia subjacente em séries de cinema como "O Exterminador do Futuro", em que androides futuristas tentam destruir um lider rebelde antes mesmo de ele nascer, ou "Matrix", no qual os seres humanos vivem um sonho perpétuo, enquanto servem de fonte de energia para um mundo real controlado por máquinas.

Essa abordagem pode render filmes divertidos para se ver comendo pipoca, mas não leva em consideração um ponto inquietante - o de que o maior risco da tecnologia, pelo menos por enquanto, não que é formas superiores de inteligência artificial entrem com conflito com a humanidade para destruir a civilização. A ameaça vem da capacidade que a tecnologia proporciona para que um indivíduo se vire contra outro, a fim de defender o que considera seu tipo ideal de civilização.

É o que torna a série "Black Mirror" tão instigante quanto, às vezes, difícil de assistir. Perto de chegar à quinta temporada, o seriado britânico produzido pela Netflix já abordou a obsessão das pessoas pela popularidade nas redes sociais, as consequências do uso indevido dos sistemas on-line de segurança e o papel exagerado que os aplicativos de namoro podem ganhar no relacionamento de um casal.

Ao mostrar tecnologias que ainda não estão disponíveis - e que não se sabe se estarão algum dia - os enredos enfatizam a possibilidade de um futuro nada promissor. O que dá medo, porém, não é o que pode vir a acontecer. É o que as tecnologias disponíveis atualmente já permitem fazer, como se convivêssemos com protótipos de armas tecnológicas potencialmente destrutivas, à espera de que alguém que descubra como usá-los para fins secretos.

É aterrador ver como os cães robóticos que caçam seres humanos no episódio "Metalhead", em meio a um cenário apocalíptico, lembram os robôs em forma de animais que estão sendo produzidos pela Boston Dynamics - empresa comprada pelo Google em 2013, e quatro anos mais tarde vendida para o grupo japonês SoftBank.

Ou como a obsessão por ser aceita na mídia social faz a protagonista de "Queda Livre" enfrentar um inferno para chegar ao casamento de uma amiga, no qual deixa de ser bem-vinda a um certo ponto da trama, na espectativa de recuperar pontos perdidos de popularidade.

O episódio me lembrou uma dupla de garotas que vi recentemente em frente de um shopping na zona Sul de São Paulo. Com o celular nas mãos, elas passaram um longo tempo fazendo "selfies" diante de uma das mais sofisticadas joalherias da cidade. Depois da sessão fotográfica, entusiasmadas com as imagens que obtiveram com a marca ao fundo, foram embora. Sem sequer entrar na loja ou xeretar na vitrine. A foto para as amigas já valeu.

Outro episódio, "Odiados pela nação", aborda o inverso da popularidade - aqueles que se tornam vítimas de campanhas de ódio e difamação por parte dos chamados "trolls" ou "haters". No enredo, que também tem como elementos o uso indiscriminado de drones e a vigilância dos cidadãos pelo Estado, as pessoas escolhem quem elas querem ver mortas. A primeira vítima é uma jornalista muito impopular. Quando a delegada pergunta a uma professora primária porque ela entrou no site e participou da votação, ouve como resposta algo do tipo "mas é só a internet", como se uma ameaça virtual fosse pouca coisa.

Quatro anos atrás, entrevistei uma psicóloga do Rio de Janeiro que teve sua vida completamente alterada depois que a denunciaram na internet, injustamente, por maltratar gatos em seu condomínio. Só nos dez primeiros dias depois da acusação ela recebeu cerca de mil manifestações no Facebook. Alguns desejavam sua morte e houve quem sugerisse que o endereço dela fosse publicado para que pudessem se vingar.

Seria reconfortante pensar que a maioria das pessoas que desejaram acabar com a psicóloga não tenha, de fato, pensado nisso. O mais razoável é que tenha ocorrido uma explosão momentânea da ira popular. Mas é cruel que as pessoas pensem que insultar e ameaçar alguém que nunca viram possa ser considerado algo sem consequências só porque se dá no meio on-line. Ou, como diz a personagem da série, "é só internet".

A ameaça à privacidade tem se expandido porque a tecnologia avança mais rapidamente que a legislação, o que cria brechas para a prática de crimes que ainda não são caracterizados como tal.

Um dos episódios mais desconcertantes é o de um adolescente que vira alvo de chantagem de hackers que ameaçam publicar um vídeo comprometedor se ele não seguir as instruções dadas. Isso inclui assaltar um banco e, ao fim, matar outra pessoa, que também é alvo de extorsão. Spoiler: ao fim, é revelado que o delito do rapaz não é tão leve quanto parecia e que, mesmo tendo cumprido as ordens, o vídeo é liberado.

O enredo remete a um caso investigado anos atrás pelo FBI, a polícia federal americana, depois de uma garota se queixar de que alguém conseguia vê-la dentro de sua casa. Uma noite, o invasor interceptou a conversa que a vítima estava tendo com seu namorado e, quando ela tentou chamar a polícia, o hacker a ameaçou, descrevendo como ela estava vestida.

Meses mais tarde, descobriu-se que a pessoa invadira a câmera do notebook da vítima. Por isso conseguia vê-la. Mas não estava nem perto da casa da garota. O invasor, descobriram os investigadores, era um imigrante latino que vivia em uma cadeira de rodas, na casa de uma tia.

A análise mostrou que o hacker aprendera as técnicas de invasão na própria internet e que controlava a vida de dezenas de pessoas, inclusive moradores de outros países. Vítima de bala perdida, o hacker disse que queria tornar as pessoas infelizes porque era assim que se sentia. Se tinha dias maus, porque os outros não teriam? O juiz o condenou à cadeia.

Parece ou não, um caso típico de "Black Mirror"?


O país derrete sob Bolsonaro - JOSÉ CASADO

O GLOBO - 28/05

Sete meses atrás, numa tarde de domingo, Jair Bolsonaro se elegeu presidente de um país com 12 milhões de desempregados.


Sucedeu a um fragilizado Michel Temer, sobrevivente de três tentativas de cassação na Justiça Eleitoral e na Câmara. Temer conseguira domar a inflação e reverter a tendência de declínio da economia. Recebeu de Dilma Rousseff um Produto Interno Bruto em queda de 4%. Entregou com crescimento de 1%.

Vinte e oito semanas depois, a fila de desempregados aumentou para 13,4 milhões. A perspectiva de recuperação se esvaneceu. No Brasil de Bolsonaro, economistas já disputam adjetivos —estagnação ou depressão.

O presidente se entretém na caça a fantasmas do sepultado comunismo, estimulando sectarismo e manifestações de apoio ao governo. Em cinco meses, da sua caneta saiu apenas uma iniciativa para imediata criação de empregos —na produção de armas.

Bolsonaro pode não ter percebido, mas o país derrete sob seu comando. Deveria ver o caso de São Paulo, onde há sete meses obteve 15,3 milhões de votos (67,9%), com uma vitória acachapante em 631 das 645 cidades.

São Paulo se asfixia em perdas econômicas intensas, disseminadas e reincidentes. A indústria completou três trimestres de queda na produção. Em março, a recessão difundia-se por 72% dos setores industriais, sem perspectiva de reversão para veículos, alimentos, eletrônicos, máquinas e equipamentos.

Mas essa não é uma peculiaridade paulista. O IBGE já constatou declínio em dez dos 15 estados com base industrial — ou seja, em dois terços dos núcleos urbanos mais ricos, onde a vida depende dos empregos e dos salários mais qualificados.

O presidente vai precisar trocar a diversão nas redes sociais pelo trabalho, se quiser fechar o primeiro ano de governo com crescimento irrisório, em torno de 1%. Com desemprego em alta, população empobrecida, empresas endividadas e sem investimento, ele já preside um país em flerte com a depressão. O tempo passou, e Bolsonaro não viu.

5 tributos por 1 - EDITORIAL FOLHA DE SP

FOLHA DE SP - 28/05

Proposta engenhosa de reforma do sistema de impostos dá 1º passo na Câmara


Se o Congresso de fato estiver disposto a assumir maior protagonismo na condução da agenda do país, poucas contribuições seriam tão essenciais quanto um redesenho do sistema nacional de impostos. Poucas, também, são tão difíceis.

Nesse sentido, convém celebrar com cautela o avanço do projeto de reforma tributária recém-aprovada, por iniciativa dos parlamentares, pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara.

A votação simbólica, com oposição apenas do PSOL, pode dar a impressão enganosa de que há razoável consenso em torno da proposta de emenda à Constituição.

Entretanto os deputados pretendiam, naquele momento, demonstrar autonomia em relação ao governo Jair Bolsonaro (PSL). O mérito do texto deve ser objeto de renhido debate daqui para a frente.

Não que haja maiores objeções técnicas ou políticas ao intento central da PEC 45, apresentada pelo deputado Baleia Rossi (MDB-SP) com base na estratégia elaborada pelo Centro de Cidadania Fiscal, com adeptos à esquerda e à direita.

Identifica-se corretamente a anomalia mais gritante do sistema tributário —o excesso de impostos e contribuições incidentes sobre o consumo e sua legislação quase impenetrável, repleta de regras particulares para setores e regiões, que distorcem decisões de negócios e criam enorme custo com burocracia e processos judiciais.

Propõe-se, assim, substituir cinco tributos —os federais PIS, Cofins e IPI, o estadual ICMS e o municipal ISS— por um único Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), cuja receita seria repartida entre todos os entes federativos. A União poderia ainda instituir um imposto extra sobre produtos como bebidas alcoólicas e cigarros.

O IBS seria cobrado no local de consumo, à diferença do ICMS, cuja maior arrecadação se dá no local de produção. Com isso, acabam as políticas estaduais de concessão de benefícios fiscais para a atração de investimentos, que corrompem a busca das empresas por eficiência.

A tão desejada simplificação do sistema, porém, enfrenta resistência tenaz dos beneficiados pelo statu quo, da Zona Franca de Manaus a órgãos públicos que contam com parcelas carimbadas da receita dos impostos a serem extintos.

Acrescentem-se governadores e prefeitos receosos de perder arrecadação ou a capacidade de conceder incentivos, além de conflitos previsíveis e legítimos em torno da fixação das alíquotas do novo imposto. Obstáculos do gênero fizeram naufragar as reformas tentadas desde os anos 1990.

Sabiamente, a nova PEC estabelece um prazo de dez anos para a implantação passo a passo do IBS e de meio século para o ajuste da repartição federativa dos recursos. Ainda assim, não se podem subestimar os percalços da tramitação.

O texto não dá conta de todas as mazelas tributárias do país; deixa de lado, por exemplo, a injusta distribuição da carga entre ricos e pobres. Mas merece, sem dúvida, o apoio e o engajamento das forças políticas nacionais —a começar pelo Executivo federal.