domingo, fevereiro 26, 2012

Escada acima, ladeira abaixo - HUMBERTO WERNECK


O Estado de S.Paulo - 26/02/12


Num momento de alma enfarruscada, me pego pensando se um dia já não darei conta de superar com pernas próprias os 24 degraus que conduzem a este apartamento. A questão não me ocorria quando, faz quase 20 anos, cheguei de treco & tralha a este edifício da década de 1940, o Damião, gêmeo do vizinho Cosme, numa quadra em que Perdizes vira Pacaembu. Na época, eu subia de dois em dois, e até de três em três, dependendo da motivação, os meus degraus de granilito. Hoje me pergunto se já eram 24.

Quem me viu, quem me vê. Houve um tempo em que, malgrado o Gauloise nos lábios e o fumacê nos bofes, eu encarava lampeiro, várias vezes por dia, os 99 degraus de acesso ao sexto andar de um prédio parisiense sem elevador onde passei um ano inesquecível. Prédio mais antigo, aliás, e isso me impressionava, do que a cidade onde nasci: fazia 17 anos que estava de pé no boulevard Montparnasse quando, em 1897, Belo Horizonte foi inaugurada. Continua firme. O charme está até na numeração: 55 bis. Como se a qualquer momento o edifício fosse decolar, que nem o 14 Bis de Santos Dumont. Depois habitei cafofos mais acessíveis e confortáveis. Nenhum deles, porém, tão mobiliado com boas lembranças quanto aquele.

Caiu do céu, como se diz. Pertencia a uma francesa simpática e de língua presa, Marie-Hélène de Oliveira, Oliveira porque remotamente casada com um português. Acho que já contei a história - me interrompa, por favor, se estiver me repetindo. Me repito como uma roda-gigante (isto, certamente, já falei). Pois bem, Marie-Hélène se casou com o portuga e veio viver em Fortaleza. Mal tiveram um filho, Cédric, e o casamento, numa triste rima, foi a pique. O Sr. Oliveira ficou por aqui e Marie-Hélène, com a cria, se mandou de volta para a França.

Quando a conheci, sonhava unilateralmente com uma recaída matrimonial e armava o bote para nova temporada brasileira. Procurava alguém que alugasse o apartamento de Paris - e quanto a isso também eu lhe caí do céu, pois estava em condições de lhe pagar o aluguel no Brasil. Tinha aqui, saudosos tempos, umas gorduras financeiras, e lhe propus mais: um ano adiantado, desde que me fizesse desconto. Fechamos negócio. Fechamos também o único quarto do apartamento, não só para baratear o aluguel como para livrar a sala dos cacarecos da proprietária. E para cá veio a romântica Marie-Hélène, não sem antes me confessar, ruborizada de felicidade, que pusera na bagagem seu veterano vestido de noiva.

Tamanha fé no amor não nos permitiu imaginar que poucos meses depois a minha senhoria haveria de refluir a Paris, com o filho, o vestido e um coração devastado. Não era para menos: sob o sol dos trópicos, encontrou o ex-marido convertido num português do folclore, ou seja, aninhado nos braços de uma mulata. E o gajo ainda teve o desplante de lhe propor um ménage à trois em que ela e a globeleza dividiriam o posto de Sra. Oliveira. Desgraça pouca sendo bobagem, Marie-Hélène contraiu uma dessas doenças tropicais que só nós somos capazes de proporcionar a um habitante do Hemisfério Setentrional - e, sem recursos nem relações na cidade, foi acabar, Cédric a tiracolo, na enfermaria de um hospitalão do Rio de Janeiro. Por pouco seus ossos não ficaram para sempre entre nós.

De volta à terra, esquálida, acabada enquanto pessoa, Maria Hélène tentou obter de mim a devolução do apartamento. Diante da negativa, deu uma de Sr. Oliveira e me propôs dividirmos o mocó, onde ela e o rebento ocupariam o quarto atulhado de cacarecos. Nananinanana, Marie-Hélène. A moça pôs uma tromba e foi se instalar sobre meu teto, numa glacial chambre de bonne. Se você já foi ver o divertido As mulheres do 6.º andar, terá em mente os quartinhos claustrofóbicos, sem banho, WC e água quente, que se usava construir no topo dos edifícios para aquartelar a criadagem. Até o final daquele inverno, que foi brabo, volta e meia eu topava nas escadas com Marie-Hélène, encapotada qual esquimó.

Mas não era da dona, e sim do apartamento, que eu pretendia falar. Falarei no domingo que vem, se houver.

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