Valor Econômico - 04/06
A fragilidade fiscal não necessariamente inviabilizará flexibilização monetária adicional no curto prazo, mas tende a torná-la menos sustentável
A redução da taxa básica de juros para o patamar inédito de 3% ao ano e a sinalização, pelo Copom, de que a mesma pode cair mais, suscitaram um crescente debate sobre qual seria o limite inferior para a Selic. Na ausência de espaço fiscal, este debate fica particularmente mais intenso, uma vez que a política monetária passa a ser praticamente a única ferramenta para estimular a economia.
Em diversas economias avançadas, a taxa de juros de política monetária chegou a zero, ou até a valores levemente negativos. Nas economias emergentes, as taxas básicas têm geralmente atingido níveis mínimos em território positivo, ainda que às vezes próximo de zero. No caso brasileiro ainda estamos bem distantes de zero, mas o debate sobre o limite mínimo começou, inclusive dentro do Copom, como registrado na ata de sua mais recente reunião.
A discussão sobre o limite mínimo para a Selic explicita uma diferença conceitual importante. No regime de metas para a inflação, a taxa básica de juros deve ser calibrada para que as projeções de inflação do Banco Central convirjam para a trajetória almejada. Assim, se as projeções desviam da trajetória por baixo/cima, cabe aos banqueiros centrais cortar/elevar a taxa de juros.
Dado o choque ocasionado pela covid-19, que tem impactos predominantemente desinflacionários, ainda que afete negativamente tanto a oferta quanto a demanda, a reação das autoridades tem sido a esperada, cortar a taxa básica de juros. Se continuarmos observando pressões desinflacionárias adicionais, então a tendência é de redução das projeções de inflação, o que abriria espaço para novas quedas da Selic. A princípio, enquanto as autoridades seguirem as “regras do jogo” do regime de metas para a inflação, diante de um choque desinflacionário persistente, não há limites conceituais para que a taxa Selic chegue próxima de zero nos meses à frente - ainda que a corrente deterioração fiscal suscite muitas dúvidas sobre a sustentabilidade do ambiente de taxas de juros baixas no médio prazo.
Entretanto, em contraste com os países desenvolvidos, a discussão sobre o limite inferior de juros em economias emergentes com frequência envolve considerações sobre o comportamento dos fluxos de capitais e da taxa de câmbio, ou seja, a “paridade externa”. Se, em vez de seguir as regras do jogo descritas acima, as autoridades monetárias estiverem mais preocupadas em conter a depreciação cambial, então a lógica de determinação das taxas de juros é outra: basicamente trata-se de adicionar prêmios de risco à taxa de juros externa (geralmente a taxa básica nos EUA, dado o caráter de moeda de reserva do dólar). Essa lógica, paridade externa, imperou no país entre 1995 e o início de 1999, na fase inicial do Plano Real, antes da adoção do regime de metas para a inflação.
Fazendo esse tipo de exercício para diversas economias da região, considerando medidas de risco país (usualmente os prêmios de seguro contra eventos de crédito nas dívidas soberanas em diferentes horizontes) e a taxa de juros nos EUA, encontramos pisos para as taxas básicas que estariam em um intervalo que vai de 0,3% ao ano até 3,5% ao ano.
Considerando-se apenas as estimativas médias para cada economia, países com fundamentos fiscais mais sólidos e, consequentemente, medidas de risco país mais baixas, têm limites inferiores mais baixos, cerca de 0,6% ao ano para Chile e Peru. Economias com fundamentos fiscais mais frágeis, como Colômbia e México, têm taxas mínimas mais altas, em torno de 1,5% ao ano, ao passo que no Brasil, com situação fiscal ainda mais débil e piorando na margem, o piso estaria em torno de 2% ao ano.
Aplicando essa lógica, o Brasil teria pouco espaço para flexibilização monetária adicional, o mesmo valendo para Chile e Peru, onde as taxas básicas encontram-se atualmente em 0,5% e 0,25% a.a., respectivamente. Já a Colômbia (taxa básica em 3,25% a.a.) e, em especial, o México (5,5% a.a.) teriam mais latitude para relaxar a política monetária.
A rigor, calibrar a taxa de juros para estabilizar a taxa de câmbio é geralmente inconsistente com o regime de metas para a inflação. Isso não quer dizer que a taxa de câmbio seja irrelevante para as decisões de política monetária sob o regime de metas. As duas lógicas, “regras do jogo” e paridade externa, podem mesmo ser reconciliadas em circunstâncias excepcionais, se o comportamento da taxa de câmbio passar a dominar a dinâmica inflacionária prospectiva.
Moedas emergentes, como o real, são ativos de risco que depreciam em crises e recessões. Assim, investidores demandam um prêmio “cambial” para segurar ativos denominados em real. Esse prêmio cambial é adicional ao risco país, medido, por exemplo, pelo CDS. Se a Selic deixar de incorporar prêmios com relação à paridade cambial, os mercados podem não repassar novos cortes da taxa básica para a curva de juros (mesmo em prazos curtos). Alternativamente, poderia ocorrer um overshooting cambial para um nível que torne provável uma valorização futura da moeda nacional. Em um ambiente incerto como o atual, esse overshooting do real poderia ser muito intenso, ameaçando as projeções de inflação.
No Brasil, os sinais de repasse da depreciação cambial aos preços internos têm se mantido, até o momento, limitados (mas não nulos, haja vista o comportamento dos preços ao atacado). Isso não quer dizer que o repasse cambial não possa aumentar quando a atividade econômica passar a se recuperar. A fragilidade fiscal, em resumo, não necessariamente inviabilizará alguma flexibilização monetária adicional no curto prazo, mas tende a torná-la menos sustentável. E o canal de contágio é a taxa de câmbio - não estabelece um piso, mas limita a nossa capacidade de conviver com juros muito baixos por períodos de tempo mais estendidos.
Mario Mesquita é economista-chefe do Itaú Unibanco
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