A boa regra depois que o crime passou a usar a imprensa seria o ‘full disclosure’ nas redações
No primeiro debate entre os 20 concorrentes à indicação para candidato a presidente pelo Partido Democrata, nos EUA, o principal “argumento de venda” foi apresentar-se como quem conseguiu o maior numero de contribuições abaixo de US$ 200 e recusou mais doações milionárias. Está aí um exemplo de como a boa regra induz o bom comportamento. Naquele país, a única que existe para financiamento de campanhas é que os concorrentes estão obrigados a declarar cada contribuição recebida no prazo de cinco dias. Cabe ao eleitor avaliar se elas o comprometem ou não. Aqui, onde preferimos que o Estado fiscalize tudo, inclusive a si mesmo, a perspectiva mais palpável é que na próxima eleição nos seja arrancado mais que o dobro do que nos foi arrancado na última, que cada partido receba seu quinhão segundo o desempenho na eleição anterior, e não pelo que tiver feito de bom ou de ruim com o mandato recebido, e que jamais saibamos quem, dentro deles, ficou com quanto desse dinheiro.
As instituições, como as pessoas, são elas e sua circunstância. Não é à toa que a expressão que define a ordem institucional democrática é checks and balances, “freios e contrapesos”. Cada instituição só produz o efeito desejado quando referida a todas as outras. Tomadas isoladamente ou encaixadas num contexto pervertido, elas quase sempre produzem o efeito inverso do que se propõem.
No Estado Democrático de Direito “todo o poder emana do povo” e toda lei só se torna lei mediante o seu consentimento explícito. O primeiro direito que condiciona todos os outros é, portanto, o de o eleitor livrar-se na hora do representante que só age em prol de si mesmo. E para que isso seja possível é preciso, primeiro, que o sistema eleitoral permita saber exatamente quem é o representante de quem e que os representados, e não os representantes, tenham a prerrogativa exclusiva de acionar os instrumentos de força criados para constrangê-los a lhes serem fiéis. Inverter essa hierarquia é inverter toda a cadeia das lealdades. Nada é “consertável” no Brasil antes que consertemos isso.
São as circunstâncias reais, e não a teoria, que põem o corte de um lado ou do outro da lâmina de cada instituição. Afirmar como “óbvio” na ordem institucional brasileira, onde o Estado tem todas as prerrogativas e o cidadão nenhuma, o que é óbvio na ordem institucional americana, onde se dá exatamente o contrário, é manter o País no beco sem saída dos falsos silogismos em que andamos perdendo sangue, suor e lágrimas há 519 anos.
Assumir que a decisão monocrática do sr. Toffoli é desinteressada, nada tem que ver com Flávio Bolsonaro, nem tira da porta da cadeia e põe na da rua todos os criminosos com e sem mandato mais perigosos da República é tão falso quanto negar que o sigilo bancário (até dos agentes do Estado) é um direito que deve ser protegido em princípio... se todas as outras instituições estiverem estruturadas para manter o Estado nas mãos dos cidadãos, e não o contrário.
Se, por exemplo, os promotores públicos, aqui como lá, fossem eleitos pelo povo, e não nomeados pelos políticos que têm por função fiscalizar e contra cujos poderes têm obrigação de nos defender; se os juízes passassem por eleições periódicas de confirmação; se tivéssemos os direitos à retomada de mandatos e ao referendo do que vem dos Legislativos, é provável que não nos ocorresse considerar uma lei específica de abuso de autoridade. Mas sem a ancoragem de tudo à palavra final do eleitor e com todo cargo ou emprego público sacramentado como um “direito adquirido” inalienável, é certo que até a lei de abuso que vier será usada seletivamente, como todas as outras, na defesa de privilégios, contra qualquer tentativa de eliminá-los.
O trabalho jornalístico que não parte desta que é a nossa realidade, esta, sim, pra lá de óbvia, já começa falso. A justificativa do instituto do sigilo da fonte, por exemplo, é sacrificar a transparência da informação em nome do valor mais alto do aperfeiçoamento da democracia, a primeira e inegociável razão de existir da imprensa democrática. Mas publicar como se fosse produto de jornalismo investigativo os grampos e dossiês que as partes que disputam o poder livres de qualquer compromisso exigível pelos eleitores atiram umas contra as outras e manter anônima a fonte, quando não é um ato de cumplicidade, é um convite para o aparelhamento do jornalismo.
A virtude sempre precisou de incentivos. A boa regra para estes tempos em que o crime se especializou em usar em vez de fugir da imprensa e da lei seria a do full disclosure, ou “transparência absoluta”, nas redações. O jornalista que exige que servidores em atividade, como Deltan Dallagnol, sejam obrigados a relatar as palestras que fazem, indicando quem pagou por elas e quanto, além das atividades conflituosas de suas esposas e seus parentes próximos, não terá nenhuma dificuldade de entender a importância do full disclosure, não só das peças de “jornalismo de acesso” onde saber de onde vêm os tiros contribui muito mais para o aperfeiçoamento da democracia que o apedrejamento do alvo visado, mas até de contemplar a criação de uma versão doméstica da lei antinepotismo.
Não há conflito obrigatório no fato de jornalistas com cônjuges, companheiros ou parentes em linha reta, colateral ou por afinidade até o terceiro grau assalariados ou detentores de privilégios concedidos pelo Estado participarem da cobertura da guerra do Brasil plebeu contra a privilegiatura. Mas a obrigação de declará-lo sob o hiperlink de cada assinatura certamente os incentivaria a ser mais equilibrados no direcionamento das suas investigações, além de ter um efeito fulminante contra a instrumentalização anônima da arma da imprensa.
Os destinos do jornalismo e da democracia sempre estiveram amarrados. O choque de transparência, para além de distingui-lo definitivamente da luta pelo poder e da guerra suja da internet, teria para a qualidade do jornalismo e da democracia brasileiros um efeito restaurador.
No primeiro debate entre os 20 concorrentes à indicação para candidato a presidente pelo Partido Democrata, nos EUA, o principal “argumento de venda” foi apresentar-se como quem conseguiu o maior numero de contribuições abaixo de US$ 200 e recusou mais doações milionárias. Está aí um exemplo de como a boa regra induz o bom comportamento. Naquele país, a única que existe para financiamento de campanhas é que os concorrentes estão obrigados a declarar cada contribuição recebida no prazo de cinco dias. Cabe ao eleitor avaliar se elas o comprometem ou não. Aqui, onde preferimos que o Estado fiscalize tudo, inclusive a si mesmo, a perspectiva mais palpável é que na próxima eleição nos seja arrancado mais que o dobro do que nos foi arrancado na última, que cada partido receba seu quinhão segundo o desempenho na eleição anterior, e não pelo que tiver feito de bom ou de ruim com o mandato recebido, e que jamais saibamos quem, dentro deles, ficou com quanto desse dinheiro.
As instituições, como as pessoas, são elas e sua circunstância. Não é à toa que a expressão que define a ordem institucional democrática é checks and balances, “freios e contrapesos”. Cada instituição só produz o efeito desejado quando referida a todas as outras. Tomadas isoladamente ou encaixadas num contexto pervertido, elas quase sempre produzem o efeito inverso do que se propõem.
No Estado Democrático de Direito “todo o poder emana do povo” e toda lei só se torna lei mediante o seu consentimento explícito. O primeiro direito que condiciona todos os outros é, portanto, o de o eleitor livrar-se na hora do representante que só age em prol de si mesmo. E para que isso seja possível é preciso, primeiro, que o sistema eleitoral permita saber exatamente quem é o representante de quem e que os representados, e não os representantes, tenham a prerrogativa exclusiva de acionar os instrumentos de força criados para constrangê-los a lhes serem fiéis. Inverter essa hierarquia é inverter toda a cadeia das lealdades. Nada é “consertável” no Brasil antes que consertemos isso.
São as circunstâncias reais, e não a teoria, que põem o corte de um lado ou do outro da lâmina de cada instituição. Afirmar como “óbvio” na ordem institucional brasileira, onde o Estado tem todas as prerrogativas e o cidadão nenhuma, o que é óbvio na ordem institucional americana, onde se dá exatamente o contrário, é manter o País no beco sem saída dos falsos silogismos em que andamos perdendo sangue, suor e lágrimas há 519 anos.
Assumir que a decisão monocrática do sr. Toffoli é desinteressada, nada tem que ver com Flávio Bolsonaro, nem tira da porta da cadeia e põe na da rua todos os criminosos com e sem mandato mais perigosos da República é tão falso quanto negar que o sigilo bancário (até dos agentes do Estado) é um direito que deve ser protegido em princípio... se todas as outras instituições estiverem estruturadas para manter o Estado nas mãos dos cidadãos, e não o contrário.
Se, por exemplo, os promotores públicos, aqui como lá, fossem eleitos pelo povo, e não nomeados pelos políticos que têm por função fiscalizar e contra cujos poderes têm obrigação de nos defender; se os juízes passassem por eleições periódicas de confirmação; se tivéssemos os direitos à retomada de mandatos e ao referendo do que vem dos Legislativos, é provável que não nos ocorresse considerar uma lei específica de abuso de autoridade. Mas sem a ancoragem de tudo à palavra final do eleitor e com todo cargo ou emprego público sacramentado como um “direito adquirido” inalienável, é certo que até a lei de abuso que vier será usada seletivamente, como todas as outras, na defesa de privilégios, contra qualquer tentativa de eliminá-los.
O trabalho jornalístico que não parte desta que é a nossa realidade, esta, sim, pra lá de óbvia, já começa falso. A justificativa do instituto do sigilo da fonte, por exemplo, é sacrificar a transparência da informação em nome do valor mais alto do aperfeiçoamento da democracia, a primeira e inegociável razão de existir da imprensa democrática. Mas publicar como se fosse produto de jornalismo investigativo os grampos e dossiês que as partes que disputam o poder livres de qualquer compromisso exigível pelos eleitores atiram umas contra as outras e manter anônima a fonte, quando não é um ato de cumplicidade, é um convite para o aparelhamento do jornalismo.
A virtude sempre precisou de incentivos. A boa regra para estes tempos em que o crime se especializou em usar em vez de fugir da imprensa e da lei seria a do full disclosure, ou “transparência absoluta”, nas redações. O jornalista que exige que servidores em atividade, como Deltan Dallagnol, sejam obrigados a relatar as palestras que fazem, indicando quem pagou por elas e quanto, além das atividades conflituosas de suas esposas e seus parentes próximos, não terá nenhuma dificuldade de entender a importância do full disclosure, não só das peças de “jornalismo de acesso” onde saber de onde vêm os tiros contribui muito mais para o aperfeiçoamento da democracia que o apedrejamento do alvo visado, mas até de contemplar a criação de uma versão doméstica da lei antinepotismo.
Não há conflito obrigatório no fato de jornalistas com cônjuges, companheiros ou parentes em linha reta, colateral ou por afinidade até o terceiro grau assalariados ou detentores de privilégios concedidos pelo Estado participarem da cobertura da guerra do Brasil plebeu contra a privilegiatura. Mas a obrigação de declará-lo sob o hiperlink de cada assinatura certamente os incentivaria a ser mais equilibrados no direcionamento das suas investigações, além de ter um efeito fulminante contra a instrumentalização anônima da arma da imprensa.
Os destinos do jornalismo e da democracia sempre estiveram amarrados. O choque de transparência, para além de distingui-lo definitivamente da luta pelo poder e da guerra suja da internet, teria para a qualidade do jornalismo e da democracia brasileiros um efeito restaurador.
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