Dividir para reinar sempre foi a receita favorita dos tiranos
Se a democracia morrer no século 21, não será como no século 20. Eis, em resumo, o que vários cientistas políticos nos dizem. Hoje, ninguém acredita em tanques nas ruas ou bombas nos palácios. Há formas mais sutis de chegar ao mesmo fim: a supressão da liberdade e o triunfo do autoritarismo. E que formas são essas?
Um livro recente, que falha em muita coisa, acerta no essencial. Foi escrito por Ece Temelkuran, uma conhecida escritora turca. O título resume a ambição da obra: "How to Lose a Country - The 7 Steps from Democracy to Dictatorship" (como perder um país - os 7 passos da democracia à ditadura, em português).
Escrevi que o livro falha em muita coisa porque Temelkuran procura convencer o leitor de que o exemplo turco será seguido por outros países europeus e, é claro, pelos Estados Unidos de Donald Trump. Um caminho de centralização do poder que terminará com presos políticos, censura da mídia, eleições fraudulentas e a oposição no exílio.
Lamento. Não compro essa histeria. Por mais indigesto que DonaldTrump seja, os Estados Unidos ainda não são a Turquia. A tradição democrática dos primeiros não pode ser confundida com a ausência de tradição da segunda.
Por outro lado, também não compro a forma displicente como Temelkuran inclui o brexit na vaga extremista que persiste na Europa.
Como se viu nas recentes eleições europeias, com a vitória do Brexit Party e a humilhação de conservadores e trabalhistas, os ingleses não apenas querem sair da União Europeia como não toleraram a traição que os dois partidos consumaram sobre o eleitorado, sabotando o que foi decidido nas urnas.
O livro de Temelkuran interessa-me por outro motivo: primeiro, porque é um retrato notável sobre a regressão democrática na Turquia; e, em segundo lugar, porque essa regressão pode ser imitada em democracias incipientes ou pouco consolidadas.
Segundo Temelkuran, essa viagem para as trevas começa com a criação de um movimento (como o partido AKP de Recep Tayyip Erdogan) que explora o ressentimento popular contra as elites (políticas, econômicas, midiáticas etc.) de forma a tribalizar a sociedade (nós versus eles).
Não que as massas —o "povo real", para usar essa expressão equívoca— não tenham razões de queixa. Mas o movimento vitimiza as massas de uma forma histérica e irracional, aumentando as suas dores.
Formado o movimento, há um assalto aos opositores que é também um assalto à linguagem (George Orwell sabia disso no seu "1984"). No melhor capítulo do livro, Temelkuran vai listando o tipo de argumentos que os partidários de Erdogan usam contra os inimigos.
Podem ser argumentos "ad hominem", quando é a pessoa a ser atacada, e não as suas ideias. Podem ser argumentos "ad ignorantiam", em que algo é refutado (ou defendido) porque ninguém o conseguiu provar (ou refutar).
E podem ainda ser argumentos "ad populum" —algo é verdadeiro porque muita gente acredita nisso, ponto final.
Como conclusão, a autora recorda um observação certíssima de Albert Camus: "Um homem com quem não se pode conversar é um homem a ser temido". Muitas democracias atuais converteram-se nesse inferno de Camus: espaços onde ninguém fala com ninguém.
Formado o movimento e a sua linguagem terrorista, há um assalto ao "sentido de decência" —o que era impensável e impronunciável por razões de civilidade é agora dito, repetido e normalizado.
Uma vez no poder, o movimento derruba os mecanismos judiciais e políticos que sustentam a democracia liberal (controle dos juízes; sabotagem de partidos rivais; eleições fraudulentas etc.).
Finalmente, e em plena consonância com experiências ditatoriais ocorridas no passado, o novo regime cria um "cidadão novo" (os "cidadãos velhos" não têm vez) e até um "país novo" (sobre os escombros do antigo). Assim, e nas palavras da autora, "a alma de um país é alterada irrevogavelmente quando ele repudia os seus cidadãos".
O livro de Ece Temelkuran é o testemunho pungente de quem acompanhou a deriva autoritária do seu país, exilando-se no processo.
Mas é também uma análise fina sobre o autoritarismo no mundo contemporâneo: um fenômeno que dispensa exércitos ou violência física, optando antes por uma guerra civil existencial em que uma parte da nação é renegada pela outra parte.
Dividir para reinar sempre foi a receita favorita dos tiranos.
João Pereira Coutinho
Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.
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