O Reino Unido (RU) nunca se engajou plenamente na União Europeia (UE), pois sempre se orgulhou de ser uma ilha isolada do continente. Desde o início do processo de integração regional, a sociedade e os partidos políticos se dividiram. Apesar das muitas vantagens de participar do bloco, pesava o apreço pela independência, pelas próprias peculiaridades e a consciência de sua influência mundo. Ao longo do tempo, em vista de sua hesitante participação e de seu euroceticismo, conseguiu um status especial na comunidade ao optar por ficar fora da zona monetária do euro e manter o controle de suas fronteiras ao não aderir ao tratado de livre movimentação de pessoas, evitando assim uma integração política mais profunda.
Tantas eram as discordâncias em relação ao tema dentro de seu próprio partido que o primeiro-ministro David Cameron convocou um referendo para que os britânicos decidissem se o país deveria ou não permanecer como membro da UE. O referendo do dia 23 ocorreu num momento delicado para a UE: baixo crescimento econômico, desemprego, grande afluxo de refugiados, sobretudo do Oriente Médio, discussão sobre a entrada da Turquia, crescente tensão com o islamismo e ameaças de terrorismo.
A decisão de sair da UE prevaleceu em todas as regiões do país, à exceção de Londres, da Escócia e da Irlanda do Norte. Venceu o sentimento de ceticismo quanto aos ganhos trazidos pela integração regional e a crítica – dos que pregavam a autonomia – de que o país havia perdido sua soberania e estava sendo governado pela burocracia supranacional da Comissão Europeia, em Bruxelas.
Até a negociação da saída da UE, segundo ritual definido pelo artigo 50 do Tratado de Lisboa, o RU continuará a participar das decisões e das negociações regionais. O resultado do referendo, porém, já começou a produzir efeitos internos políticos e financeiros, como se viu nos últimos dias, e terá profundas consequências, tanto para o RU como para a UE, em médio e longo prazos.
Para o Reino Unido, a incerteza política e institucional começou com a renúncia do primeiro-ministro e com a disputa pela liderança do Partido Conservador e se ampliou com a possível convocação de consulta popular para decidir sobre a separação da Escócia, pondo fim ao Reino Unido.
Na macroeconomia, a dar-se crédito aos argumentos do governo para permanecer na UE, poderá haver uma queda no crescimento do PIB entre 3% e 6%, recessão, desvalorização, desemprego, aumento da inflação, redução do investimento direto com impacto negativo sobre as empresas. Londres, como principal centro financeiro da Europa, poderá ser afetada pela saída de instituições financeiras para Frankfurt ou Paris.
No comércio global e na defesa (não deverá haver mudança no tocante à participação na Otan) e segurança internacionais (combate ao terrorismo), terão de ser redefinidos os termos em que se fará a cooperação bilateral. A divulgação de números crescentes de imigrantes no Reino Unidos em 2015 – uma das principais causas do resultado negativo do referendo – deverá levar a restrições na legislação, com o risco de aumentarem os atritos na sociedade britânica.
Duas são as opções que se abrem para o RU na negociação com a UE: a primeira é tornar-se membro da Área Econômica Europeia, como a Noruega, ser obrigado a contribuir para o orçamento da UE e permitir a livre movimentação de pessoas (duas das objeções do RU); a segunda é retirar-se inteiramente, comerciando com a UE de acordo com as regras da Organização Mundial do Comércio, como qualquer outro país (o que parece mais factível, apesar das dificuldades decorrentes das grandes transformações porque passam as negociações comerciais).
Para a União Europeia, a incerteza quanto ao futuro poderá aumentar caso outros países, também descontentes com os rumos do processo de integração, iniciem movimento semelhante de separação. Haverá um impacto importante no processo legislativo europeu, já que o RU, mais liberal, moderno e eficiente, funciona como um contrapeso na comissão à tendência mais estatizante e regulatória de países como a França. Partidos independentistas na Dinamarca, Holanda, França e Itália pedem a realização de referendos. Em 2017 haverá eleições presidenciais na França e na Alemanha e esse será um tema importante na campanha eleitoral. A reação inicial dos países-membros foi a de acelerar as negociações para a saída do Reino Unido a fim de fixar critérios rígidos para evitar o questionamento de outros países. França e Alemanha já sinalizaram a necessidade de mudanças nas políticas da União Europeia e consideram a saída do RU como um turning point no processo de integração europeu. Termina o mito da irreversibilidade do processo de integração regional, abalado pela emergência de sentimentos nacionalistas, xenófobos e populistas, como é o caso da francesa Marine Le Pen, contra o establishment nacional e comunitário.
O Brasil, no curto prazo, fica afetado indiretamente pela turbulência momentânea nos mercados e nos fluxos financeiros. No médio e no longo prazos, a velocidade da negociação do acordo Mercosul-UE poderá ser afetada pelo possível atraso nos entendimentos em razão dos desdobramentos internos no bloco europeu e pelo fortalecimento da visão protecionista, liderada pela França, em detrimento da percepção liberal do RU. Por outro lado, a mudança da legislação interna britânica sobre imigração poderá afetar uma parcela (não todos) dos brasileiros que vivem no RU.
A exemplo de Donald Trump, que quer “tornar os EUA grandes novamente”, o líder do Partido da Independência do Reino Unido quer “recuperar a soberania” de seu país.
Em termos mais gerais, poderemos estar assistindo ao início de uma reconfiguração da Europa e de um desafio para a ordem mundial estabelecida pelos EUA em 1945, no pós-guerra.
*Rubens Barbosa é presidente do Conselho de Comércio Exterior da Fiesp
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