segunda-feira, dezembro 09, 2013

Minha tia não usava calcinha - TONY BELLOTO

O GLOBO - 08/12

Pergunto-me que efeito terão as peças antiestupro no imaginário masculino


Calcinha antiestupro

Foi desenvolvida nos Estados Unidos a calcinha antiestupro, uma peça de tecido resistente, impossível de ser rompido por lâminas, tesouras ou dentes afiados, de modelo sutilmente mas não exageradamente sexy — lembra um shortinho justo —, que adere firmemente aos quadris e pelve de quem a veste, cuja abertura é controlada não por botão, ou zíper, mas por cadeado que só pode ser desativado com senha memorizada pela usuária. O produto estará à disposição no mercado a partir de julho do ano que vem.

Mike Tyson

Feministas reclamam, afirmando que os criadores da calcinha antiestupro “sugerem que a mulher é parcialmente responsável, por não recusar o ato com clareza.” Ou seja, as feministas acusam os criadores da engenhoca de insinuar que mulheres precisam de proteção contra si mesmas para não incentivar o ato do estupro. Elas se rebelam com razão contra a ideia machista de que mulheres estupradas são de alguma forma responsáveis por “provocar” seus agressores.

“Porra, foi até o quarto do Mike Tyson sozinha, de minissaia… tá querendo o quê?”

Papo calcinha

Independentemente das implicações políticas da peça — uma versão up to date do cinto de castidade —, a calcinha antiestupro pode render situações cômicas, como a da garota precavida que vai para a balada vestida com sua calcinha protetora e, depois de beber umas e outras, ao se encantar com um mancebo com quem decide fazer sexo, não consegue se lembrar da senha na hora de se despir.

“Já tentou o CIC?”, pergunta o rapaz, impaciente.

“Que CIC o quê…é a data de aniversário do meu pai… em que ano mesmo nasceu aquele maluco? 1968 ou 1969?”

Ou o caso mais prosaico da mocinha obediente que, munida de sua calcinha antiestupro por sugestão da mãe preocupada, depois de beber o quinto chope esquece-se da senha na hora de ir ao banheiro.

“Meu amor, voltou cedo… aconteceu alguma coisa ruim?”

“Não, mãe, tudo certo. Esqueci a senha.”

“Esqueceu? Tentaram alguma coisa com você?”

“Nada, não fui estuprada. Só fiz xixi na calça.”

Kátia Flávia

Pergunto-me que efeito terão as calcinhas antiestupro no imaginário masculino. Nos parágrafos de abertura do romance “Misto-quente”, Charles Bukowski evoca suas primeiras lembranças descrevendo a visão de um menino sob uma mesa olhando pernas de adultos que se movimentam à sua volta. Lembro de situações semelhantes em que ficava sob a mesa (ou a escada) ansiando pelo vislumbre de uma calcinha. Para um menino, a visão de uma calcinha é sempre impactante e reveladora das complexidades do mundo. Garotos gastam muito tempo de suas infâncias e adolescências em busca de relances de uma calcinha. Não importa que essa visão seja dificultada por saias, minissaias, vestidos, batas, shortinhos ou uniformes escolares. Quando se avista uma calcinha experimenta-se a sensação de vitória. Até mesmo meninos afegãos de comunidades talibãs anseiam pela visão de calcinhas brancas sob burcas negras.

Kátia Flávia, a Godiva do Irajá, personagem da canção de Fausto Fawcett, uma “gostosona que só usa calcinhas comestíveis e bélicas, dessas com armamentos bordados”, depois de roubar um carro da polícia, avisa pelo rádio: “Alô, polícia! Eu tô usando um Exocet-calcinha! Calcinha bordadinha, calcinha de rendinha, calcinha geladinha…”

A canção não nos revela qual foi a reação dos policiais às provocações da louraça enlouquecida.

Maio de 1968

Em 1968 passei alguns meses na Europa por conta de pesquisas acadêmicas que meus pais realizavam. Enquanto eles viajavam pelo continente, eu e minha irmã ficávamos aos cuidados de nossa avó paterna, hospedados em casa de parentes na Póvoa do Rio de Moinhos, uma aldeia de 500 habitantes localizada na Beira Baixa, região central de Portugal. Eu tinha oito anos. Numa manhã saí em companhia de uma tia, a tia Saraiva, para acompanhá-la em sua rotina de colher couves e batatas pelos campos. A tia se parecia com uma bruxa, vestida de preto, com um nariz enorme, rosto enrugado e boca banguela. Tia Saraiva me colocou sobre uma mula enquanto caminhava ao meu lado por uma estradinha cercada de muros medievais que demarcavam terrenos com oliveiras. A mula, acostumada ao trajeto, mantinha o passo mesmo quando tia Saraiva se afastava momentaneamente para pegar um galho de árvore ou observar o voo de um pássaro. Numa curva, perdi a tia de vista e, sem saber como desmontar da mula, achei que me perderia para sempre naquele lugar estranho e desolado. Virei o rosto desesperado e a avistei de pé no meio da estrada, com as pernas abertas, urinando. Minha tia não usava calcinha. Ainda que muitas mulheres pelo mundo estivessem naquele momento queimando sutiãs em protesto contra a opressão masculina, foi observando aquela velha camponesa urinar que compreendi pela primeira vez a força da mulher.

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