O GLOBO - 05/06
O jogo é um modelo da vida. Ele exige temporadas, palcos, equipamentos (mesas, baralhos, dados, roletas, bolas, uniformes, redes, tacos) e regras de modo a garantir uma atenção apaixonada. E, como tem inicio, meio e fim, o jogo reduz contra a indiferença da vida. Com isso fazem com que meros passantes possam posar de campeões. O domingo pode não ter mesa farta, mas tem o jogo de Brasil com sua pompa e resplendores de esperança. Os jogos são uma das passagens secretas que permitem escapar de nós mesmos.
Dentre os esportes modernos, o futebol praticado no Brasil é certamente o mais denso. Simoni Lahud Guedes, uma estudiosa pioneira do futebol, sugere que ele seria uma tela sobre a qual projetamos nossas indagações. Nascido na Inglaterra industrial dos 1860, o futebol ganhou regras fixas e, desde então, ele tem sido o sujeito predileto de intensas projeções simbólicas em todo o planeta.
No Brasil, ele acordou reações. Embora tivesse a chancela colonial de tudo o que vinha de fora e da poderosa Inglaterra, era uma atividade desconhecida. Um “esporte” (uma disputa governada por normas e pela necessidade imperiosa de saber vencer e perder), algo inusitado num Brasil que conhecia duelos e brigas que sempre acabavam mal.
Ademais, exercícios físicos e banhos frios não faziam parte da prática nacional. Entre nós, a barriguinha sempre foi prova de riqueza e da imobilidade física — expressiva do ideal de imobilidade social. Como receber essa inovação marcada pela disputa física veloz e igualitária, na qual perder e ganhar são — como na democracia — parte de sua estrutura? Onde encontrar um lugar para um jogo livre das restrições aristocráticas do nome de família, da cor da pele, e da “aparência”. Esse marco com o qual convivemos até hoje no Brasil?
O futebol sofreu muitos ataques em nome de um nacionalismo que se pensava frágil como porcelana. E, no entanto, como estamos vendo nessas vésperas de Copas, canibalizamos e digerimos o foot-ball, roubando-o dos ingleses. Hoje, há um estilo brasileiro de jogar e produzir esse esporte.
De quinta coluna capaz de desvirtuar, ao lado da música e do cinema americanos, o estilo de vida e a língua pátria, o futebol acabou servindo como um instrumento básico de reflexão sobre o Brasil, conforme eu mesmo assinalei no livro “Universo do futebol”, no qual, em 1982, agrupei um conjunto de ensaios socioantropológicos de colegas sobre esse esporte. Em 2006, no livro “A bola corre mais que os homens”, reuni trabalhos nos quais apresentava uma saída para o dilema do esporte como alienação ou consciência do mundo insistindo como, no Brasil, o sucesso futebolístico foi o nosso primeiro instrumento de autoestima diante dos países “adiantados” e inatingíveis. O futebol foi o alento de um Brasil que se concebia como doente pela mistura de raças e que, até hoje, tem problemas em conviver consigo mesmo. Ele é a garantia do recomeço honrado na derrota e do gozo sem arrogância e corrupção na vitória.
Como prova do imprevisível destino das coisa sociais, o futebol não veio confirmar a dominação colonial. Pelo contrário, ele nos fez colonizadores e, mais que isso, filósofos por meio de toda uma literatura que a partir de Nelson Rodrigues, Jacinto de Thormes (Maneco Muller), José Lins do Rego e Armando Nogueira, entre outros, nos permitiu articular uma leitura positiva do mundo.
Literatura? Não seria um exagero? Digo que não e vou mais longe para acrescentar: o futebol criou entre nós uma filosofia, uma antropologia e uma teologia. O seu maior papel foi, como eu disse algumas vezes, o de ensinar democracia. Foi revelar com todas as letras que não se ganha sempre e que o mundo é instável como uma bola.. Perder e vencer, ensina o futebol, fazem parte de uma mesma moeda.
Nelson Rodrigues fala de jogos bíblicos, do mesmo modo que nos abre a uma metafísica quando associa jogos e craques a destinos fechados ou ao afirmar que já no começo do mundo aquele gol seria perdido. Sua condenação da “objetividade burra” é uma a critica aguda de um senso-comum hierarquizado e aristocrático que tenta tornar a própria vida algo oficial, possuída pelo Estado.
Por outro lado, sua antropologia inaugura uma neoaristocracia nativa insonhável de negros e mestiços que deixam de ser híbridos enfermiços e passam — tal como ocorreu no jazz de uns Estados Unidos segregados — a príncipes, duques, condes e reis, apesar de nossos desejos inconfessáveis de fracasso. A sub-raça envenenada dos que queriam curar o Brasil tornou-se a meta-raça que, driblando os nossos sub-sociólogos — esses cartolas acadêmicos —, nos brindou com cinco Copas do Mundo. “A pátria de chuteiras” abria um novo espaço para esse futebol não branco, permitindo a países como o Brasil uma redefinição, inclusive a muito mais abrangente e sem preconceitos, de suas identidades nacionais.
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