sexta-feira, abril 19, 2013

Humilha, São Paulo - FERNANDA TORRES

FOLHA DE SP - 19/04

Grande parte das fundações culturais brasileiras adquiriu obras com o auxílio das leis de incentivo


Vivo em uma beira de praia na zona rural do país. É a certeza que me vem cada vez que boto os pés em São Paulo.

Subi o planalto para um jantar em benefício da Amfar, organização de apoio à pesquisa da Aids que angaria fundos pelo planeta. Sharon Stone, dando provas de seu QI de mais de 150, comandou a festa.

Belíssima, madura e emocionada, a americana de peitos de Barbie subiu ao palco para comemorar a cura da primeira criança vítima da doença. Há 20 anos como embaixadora da instituição, cargo anteriormente ocupado por Elizabeth Taylor, a estrela mantém uma militância ativa e questionou a Amfar por não se envolver na terapia de bebês.

Em 2008, em Cannes, Sharon cavou US$ 10 milhões (cerca de R$ 20 milhões) em uma noitada semelhante, alavancando o trabalho de cientistas que, hoje, retribuem com a cura da menina do Mississipi.

A musa liderou o leilão com uma categoria assombrosa. Diante da timidez momentânea da plateia, provocava com o vozeirão dolby surround: "Come on, Brazil, show your generosity!". Impossível resistir. Que o diga o empresário que arrematou um beijo de língua de Kate Moss por US$ 45 mil.

A gala acabou com um strip da inesquecível Dita. A dívida moral pelo fausto foi quitada com os 2 milhões de doletas arrecadadas.

Acordei e rumei para o MAC a fim de ver a "Sala de Espera" de Carlito Carvalhosa. No táxi, em um cruzamento dos Jardins, uma escultura de dois ossos gigantes, ladrilhados a la Gaudí, encostados no muro de uma mansão de esquina me chamou a atenção. Ao lado da obra, uma placa: Dog Bar. Era um spa de luxo para cachorros de madame. Só aqui.

A etérea instalação de postes suspensos, "como se estivessem prestes a desencarnar", diz Carvalhosa, já me satisfaria os sentidos. Mas era o dia da abertura do novo prédio do museu, e lá fui eu para o sétimo andar do edifício de Niemeyer, recém-liberto dos labirintos tristes do Detran.

A reforma é exemplar, só falta aparar a grama. Mas o que impressiona é a sensibilidade da curadoria de Tadeu Chiarelli. Foi confiada ao professor doutor em artes plásticas da USP a missão de organizar a exibição permanente do imenso acervo da universidade.

Em vez de ocupar o prédio todo de uma vez, pendurando quadros sem formar um pensamento crítico sobre o que é exposto, o curador optou por começar com uma pequena mostra do que poderemos esperar do MAC.

As 85 obras de "O Agora, o Antes: Uma Síntese do Acervo do MAC USP" propõe um diálogo entre as diversas épocas, estilos e artistas que compõem a coleção.

"Toda obra de arte ganha novas possibilidades de interpretação a partir do espaço que compartilha com outra", avalia Chiarelli na apresentação. "Perturbar e ressignificar verdades consagradas são as funções de uma universidade preocupada com o devir do conhecimento."

Rever "Minha Mãe Morrendo", de Flávio de Carvalho, e saber que ela estará ali sempre que eu precisar, me fez invejar um Estado que conta com pessoas com a formação de Chiarelli, fruto da solidez acadêmica das universidades paulistas.

Muitas das obras expostas pertencem ao espólio do Banco Santos, de Edemar Ferreira, e esperam a decisão da Justiça para definir seu destino. O leilão das peças serviria para cobrir parte da dívida, mas o MAC, que preserva a coleção desde 2005, também se vê como credor e anseia ser ressarcido com parte do precioso arquivo.

Torço pelo MAC. Grande parte das fundações culturais brasileiras adquiriu obras de arte com o auxílio das leis de incentivo. Devolvê-las ao público através de entidades de responsa, como a USP, seria salvá-las do esquecimento.

Chiarelli sabe que a melhor maneira de preservar um patrimônio é expô-lo. As placas de metal informando que certas peças estão sob tutela do MAC, mas fazem parte do ativo do Banco Santos retido na Polícia Federal, completam "O Agora, o Antes", e me deram o gosto de um discreto e imponente ato político.

No adeus, um Bacon de uma dúzia de milhões de dólares, retratando um elefante que atravessa uma floresta escura, diferente de tudo que eu já vi dele, estava lá para quem quisesse ver, na SP-Arte.

Humilha, São Paulo.

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