FOLHA DE SP - 02/04
SÃO PAULO - Ao que consta, o pastor Feliciano ganhou a pecha de racista por ter ligado africanos à maldição de Cam, narrada em Gênesis 9:20-27. Não sei se o sacerdote é ou não racista, mas, como exegeta da Bíblia, ele caiu no meu conceito.
A história é meio confusa mesmo. Cam, filho mais novo de Noé, encontrou o pai embriagado e desacordado, mas, em vez de guardar pudor e cobrir o ancião, foi logo contar o sucedido aos irmãos. Por isso, o construtor da arca amaldiçoou não exatamente Cam, mas seu filho Canaã.
No livro "A Maldição de Cam" (disponível só em inglês), David Goldenberg indica, de forma convincente, que o sentido original do texto bíblico não apresentava nenhum viés contra negros. Na obra, que é deliciosamente erudita, fazendo-nos saltar da literatura rabínica para o Alcorão, passando por lições de filologia hebraica e sermões de pastores do sul dos EUA, Goldenberg mostra que é a partir do início da Era Cristã, quando a proporção de escravos oriundos da África subsaariana coloca os negros em maior evidência, que a maldição vai ganhando interpretações mais racistas, que incluem até a fabricação de etimologias falsas ("Cam" significaria "queimado", "negro").
Quando chegamos ao ápice desse movimento, entre os escravagistas do sul dos EUA no século 19, aí sim passa a ser dado como "fato" que Deus lançou uma maldição sobre os africanos. Isso talvez não baste para provar que o pastor é racista, mas sugere que ele bebe nas piores fontes.
Quanto à Bíblia, ela parece, de fato, inocente da acusação de preconceito contra negros. É que, à época, seus autores estavam mais preocupados em nos ensinar a matar homossexuais (Levítico 20:13), nossos parentes que mudem de religião (Deuteronômio 13:7) e a vender nossas filhas como escravas (Êxodo 21:7).
É claro que o problema não está na Bíblia, mas em achar que um livro velho possa encerrar todas as verdades morais de que precisamos.
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