sábado, dezembro 08, 2012

Um mundo sem estantes - ÁLVARO PEREIRA JÚNIOR

FOLHA DE SP - 08/12


Colapso na nuvem, "crashes" de servidores, fibras ópticas rompidas, blecaute nos polos hi-tech


Um amigo entra na minha casa nova, vê as estantes ainda vazias e começa o bombardeio: "Para que espaço para tanto livro? Livro está acabando".

Ele não quer saber da vista, de nenhum detalhe da obra, da arquitetura ou da decoração (não que eu tivesse algo a dizer sobre essas coisas, mas, enfim, era uma casa nova). O incômodo com as estantes é maior que tudo isso.

Para me safar do cerco, banco o moderno. "Claro que eu sei, os livros eletrônicos são o futuro. Mas isso aqui é para armazenar o que eu já tenho, entende? Até hoje guardo livros na casa dos meus pais, para você ter uma ideia."

Cascata, tática diversionista. Eu sabia que, se já estava sob tiroteio pesado, tudo iria piorar quando meu amigo visse a outra face do móvel. Ali, eu dava os primeiros passos para eliminar a bagunça dos meus CDs. E "in style", à moda gringa, ordenando por sobrenome.

Um serviço que, digamos, me dava certo orgulho. Mas o sentimento só dura até o próximo balaço: "E esse monte de lugar para CDs? CD não vai existir mais".

Em busca de trégua, sugiro sairmos para jantar. Encontramos a mulher dele. Como na faixa de Gaza, o cessar-fogo tem curta duração. "O Álvaro está maluco, botou um monte de estantes na casa nova, parece que não sabe que livros e CDs estão condenados."

Isso faz alguns anos. Nem preciso dizer que, tanto para livros quanto CDs, o espaço naquelas estantes, que pareciam obsoletas, está no fim. E o mais irônico: meu amigo, profeta do apocalipse do plástico e do papel, nunca chegou a comprar um leitor eletrônico de livros. Não tem Kindle nem iPad. Continua encomendando seus volumes de papel.

Já eu, dono do móvel ultrapassado, adotei o livro digital. O encanto inicial foi grande, até escrevi sobre isso. Caminho sem volta para um mundo sem estantes? Talvez não.

Há poucos meses, o ator Bruce Willis revelou que planeja algum tipo de ação legal contra a Apple. O objetivo é garantir que sua vasta coleção de música, em grande parte baixada na loja virtual de Steve Jobs, faça parte da herança que ele deixará às filhas.

Nas entrelinhas da burocracia, Willis descobriu que as músicas não são exatamente dele, nem de ninguém que as compra. São, de certo modo, alugadas. Se ele morrer, voltam para a Apple. Não quer deixar, para as três jovens, um legado de silêncio.

O pesadelo que Willis tenta evitar, uma mulher norueguesa já enfrentou. Identificada apenas como Linn, um dia ligou seu Kindle, o leitor eletrônico da Amazon. Ao conectar o aparelho à web, o golpe: todos os livros que já tinha comprado foram apagados em um segundo.

Seguiu-se um pesadelo kafkiano. Ao contatar a Amazon, foi informada de que havia problemas de fraude em uma outra conta, também associada a ela. Como punição, todas as contas estavam sendo canceladas. Adeus, livros digitais.

Só um problema: ela não tinha nenhuma outra conta. Era claramente um engano. Mas a Amazon se recusava a dar detalhes. Linn não tinha como se defender.

Alguns escritores souberam do caso, e passaram a divulgá-lo. Só a partir daí a situação foi aparentemente resolvida. Os livros eletrônicos foram restituídos a Linn, independente do status da conta.

O futuro desse universo cada vez mais digital é cheio de riscos. Imagine: colapso na nuvem. "Crashes" de servidores, fibras ópticas rompidas, blecautes em série nos principais polos hi-tech da Terra.

Nos primórdios da web, uma situação assim teria uma consequência grave: internet fora do ar. Grave, porém única. Músicas, filmes e demais arquivos baixados pela rede estariam a salvo, guardados nos computadores das casas das pessoas.

Mas, hoje, tudo mudou. Um crash gigantesco seria muito mais devastador. Porque cada vez menos gente armazena em casa seus arquivos digitais. Está tudo em servidores poderosos, espalhados pelo mundo. Nessa nuvem, digital e amorfa.

Não é fora de propósito imaginar um cenário de perda de contato com ela. Sem livros físicos, sem CDs, os arquivos digitais perdidos na nuvem isolada. A distopia digital extrema. O mundo das ideias salvo pelas estantes.

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