O GLOBO - 02/06
Hoje, na cena política nacional, mente-se mais do que em "Avenida Brasil". Tanto na farsa quanto na novela, os personagens não são o que dizem ser ou são o que fingem não ser. Não há mocinhos quimicamente puros. Como no anúncio da cerveja, todo mundo tem um lado devassa ou, digamos, um lado Carminha Cachoeira. As relações não respeitam limites éticos nem conflitos de interesses. Cada um transgride um pouco, dá um mau passo e, como diria a presidente Dilma para outro contexto, pratica um malfeito. Tudo é natural. Vejam esta sinopse:
Às vésperas do julgamento de um processo que compromete até o pescoço altos dirigentes do seu partido, um ex-presidente da República não vê nenhum inconveniente moral em convidar para um encontro reservado na casa de um amigo de ambos (advogado e ex-juiz do Supremo Tribunal Federal) ninguém menos que um importante integrante e ex-presidente do mesmo STF, o qual, por sua vez, acha normal aceitar o convite, com certeza acreditando que talvez fosse, quem sabe, para discutirem a situação do Corinthians. Vão, falam e ouvem o que não devem durante duas horas, e saem em silêncio.
Quase um mês depois, porém, acabam batendo com a língua nos dentes, manifestando curiosamente o mesmo sentimento de "indignação" - um em relação ao outro e vice-versa (segundo revelou em seu blog o repórter Fábio Pannunzio, da TV Bandeirantes, quem "vazou" o teor da reunião foi o ex-presidente, que contou para um amigo comum, que contou para o juiz, que decidiu então contar para todo mundo, mas só a sua versão). Certamente, não conheciam o poema "Da discrição", de Mário Quintana: "Não te abras com teu amigo/Que ele um outro amigo tem./E o amigo do teu amigo/Possui amigos também." É difícil saber quem errou mais grosseiramente nesse episódio envolvendo personalidades tão importantes da nossa República.
Moral da história: não há moral nessa história.
Enquanto isso, no palco da Comissão de Ética no Senado, desenrolava-se outro espetáculo, no qual o principal vilão, que até outro dia atuava como herói naquele mesmo cenário, deu uma aula de interpretação, impressionando muitos de seus colegas. De todas as graves acusações que pesam sobre ele e registradas em centenas de gravações (recebimento de propinas milionárias, prestação de serviços a contraventor, cumplicidade com quadrilha de bicheiro), a única em que admitiu ferir o decoro parlamentar foi ter recebido como presente um inocente celular. Como disse seu advogado, é muito pouco para uma cassação de mandato.
Diante de tudo isso, se a CPI do Cachoeira tiver dificuldade de encontrar um culpado, como é bem provável, aí vai uma sugestão: condene Ismael Silva. Afinal, foi ele o responsável por fornecer ao senador o principal álibi para a sua defesa: "Nem tudo que se diz se faz."
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