terça-feira, maio 01, 2012

O esparadrapo - LUIZ GARCIA


O GLOBO - 01/05/12


Foi uma decisão unânime, o que tem significado especial. Quando o Supremo Tribunal Federal fala com uma só voz - o que não é muito comum - duas conclusões parecem ser naturais: a decisão é juridicamente óbvia e reflete o que pensa o povo na planície.

No caso, estava em discussão a política de cotas raciais adotada pela Universidade de Brasília, que reserva 20% de suas vagas para estudantes negros. Ao aprovar as cotas, o STF aplicou uma derrota no racismo - e ela pode se ampliar para outras escolas do país: como são autônomas, cada uma decidirá seu destino.

É bom não esquecer: trata-se de um primeiro passo. E tem o defeito - registrado, com absoluta pertinência, pela antropóloga Yvonne Maggie - de preservar a divisão da sociedade em etnias (expressão menos agressiva do que "raças", mas igualmente perniciosa). O fim do caminho estará no momento em que os estudantes pobres de qualquer origem sejam beneficiados por um sistema de ensino básico de qualidade que torne as cotas inteiramente dispensáveis.

No momento, nada contra o sistema de cotas: mas é bom não esquecer que, sob muitos aspectos, ele ainda pode ser comparado com um esparadrapo em fratura exposta. A propósito, é importante também lembrar que a decisão do STF foi o momento final de um processo iniciado pelo time adversário.

No caso, representado pelo DEM. O principal argumento do partido é curioso: ele acredita que o sistema de cotas afronta o princípio da igualdade, por criar um privilégio para "pessoas com características físicas específicas". Não deixa de ser verdade - embora seja legítimo lembrar o preço pago pelos portadores dessas "características" ao longo da história do país.

É evidente que, em tese, as cotas representam um privilégio. Mas parece também óbvio que privilégios são necessários, pelo menos por um bom período, para compensar as consequências de alguns séculos de injustiça.

A decisão do STF poderá ter consequências históricas. Tudo vai depender da reação de outras universidades públicas. Sendo autônomas, cada uma decidirá se adota ou não as cotas. Dependerá muito da reação da opinião pública à legitimação do sistema de cotas adotado pela Universidade de Brasília.

E as cotas são, obviamente, esparadrapo em fratura exposta: é importante que existam agora - para desaparecerem quando a qualidade e a universalidade do ensino básico e médio tornarem o esparadrapo desnecessário.

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