segunda-feira, dezembro 05, 2011

O bom moço vendia fuzil - REVISTA VEJA

REVISTA VEJA

Festejado por políticos, artistas e ONGs como humanista, líder comunitário é flagrado em vídeo negociando armas com traficantes

Leslie Leitão

A cena dura dezenove minutos e doze segundos e se passa na Rocinha, favela de 200 000 habitantes encravada em meio a bairros nobres da Zona Sul do Rio de Janeiro. Sentado à mesa onde repousam copos de plástico abastecidos com uísque está o chefão do tráfico, Antônio Francisco Bonfim Lopes, o Nem, recém-capturado pela polícia. Assessorado por um comparsa, ele negocia a compra de um fuzil de fabricação russa AK, estimado em 50 000 reais no mercado negro. O pagamento é feito com dezenas de maços de dinheiro vivo, dinheirama que toma a mesa inteira. O vídeo não deixa dúvidas quanto à identidade dos homens que vendem a arma. Um deles é William de Oliveira, 41 anos, latado no gabinete da vereadora e pré-candidata à prefeitura do Rio Andréa Gouvêa Vieira (PSDB-RJ), onde ganhava 5 300 reais. O assessor está entre as mais festejadas figuras no meio carioca de ONGs que se arvoram em prol dos direitos humanos. Ex-presidente da Associação de Moradores da Rocinha, até hoje uma liderança na favela, ele prefere se apresentar em seu blog como "William, o amigo das comunidades" .

Na última sexta-feira, de posse das imagens capturadas meses atrás por uma moradora que enviou o material sob anonimato, a polícia prendeu William e Alexandre Leopoldino da Silva, seu parceiro na venda do fuzil e braço direito na "vida comunitária". Há dois meses, Silva compunha a equipe de zeladoria do Palácio Guanabara, a sede do poder no Rio. Na delegacia, William negou com veemência o que o vídeo parece mostrar de forma inequívoca. Afirmou que o dinheiro que recebeu do traficante se destinava à campanha a deputado estadual na qual se lançou em 2010, sem sucesso. Quanto à arma, que Silva repassa às mãos de Nem, o assessor "não se lembra" de ter visto nada parecido. Dúvidas essenciais ainda pairam sobre o caso, investigado no inquérito de número 908-14422/2011. Suspeita-se que a arma tenha chegado à dupla por intermédio de PMs corruptos que atuam na região. Ao ser detido, Nem declarou que metade de seu faturamento no crime se destinava ao pagamento de propinas a esses agentes, que faziam vista grossa às barbaridades que praticava. Agora, a polícia vai ouvir as histórias de William e Silva para tentar dar um passo adiante. "Queremos desvendar uma possível teia de relações políticas mantida pela quadrilha de Nem", diz o delegado Maurício Demétrio, à frente das investigações.

Com um currículo de líder comunitário envernizado por cargos em uma dezena de associações e movimentos, William tornou-se uma das figuras mais preeminentes da Rocinha, onde nasceu. Sua reputação foi se construindo sobre duas bases: a popularidade entre os moradores e o bom convívio com os traficantes, fiadores de sua escalada. Um episódio anterior já indicava que seus laços com os marginais iam muito além da conivência que costuma marcar a atuação de organizações sociais em favelas subjugadas pelo crime. Em 2005, durante o reinado de terror implantado pelo antecessor de Nem, William foi flagrado em uma constrangedora escuta telefônica. Em nome do chefão, instruía bandidos a deixar dois fuzis roubados do Exército em uma favela dominada pela facção rival. Ficou preso por nove meses, mas conseguiu ser absolvido sob a alegação de que pretendia apenas fazer com que se livrassem dos tais fuzis, evitando um banho de sangue na Rocinha - então na iminência de uma ação policial. A emenda foi tão disparatada quanto o soneto, mas todo mundo fez que acreditou. William seguiu livre e solto, colecionando amizades nos mais diversos círculos, de políticos a artistas. Um de seus três filhos tem Flora Gil, a mulher do cantor Gilberto Gil, como madrinha.

Por sua atuação na Rocinha, ele era sempre procurado para abrir caminhos no morro - literalmente. Com a escolta de William, os obstáculos colocados pelos traficantes, de pilhas de pneus a carros velhos, eram removidos, deixando o visitante fazer seu périplo sem ser incomodado pela bandidagem. Em junho, ele ciceroneou o apresentador Luciano Huck e o ator americano Ashton Kutcher. Também já posou ali ao lado do governador Sérgio Cabral, do então presidente Lula e de Dilma Rousseff, que usou o morro como cenário de um de seus programas da campanha presidencial. Ao fundo, viam-se obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), cujo comitê na favela conta com William como integrante. A própria vereadora Andrea Gouvêa Vieira, atualmente no segundo mandato, teve em seu assessor parlamentar um passaporte valioso para fazer campanha na Rocinha. Após a prisão, dizendo-se profundamente decepcionada, a vereadora o demitiu.

A prisão de William derrama luz sobre a promiscuidade que impera entre as entidades sociais e o crime. Frequentemente, essas organizações funcionam como instrumentos do assistencialismo barato que trata de perpetuar o poder do tráfico. Na Rocinha, tal simbiose chegou ao ponto de a chapa eleita para a diretoria da maior associação de moradores da favela embalar a própria campanha com um funk em homenagem a Nem. Em prol de seus candidatos, o traficante sempre endereçou à população recado sucinto: "Não aceito derrota". Não é a primeira vez que alguém que se diz ardoroso defensor dos direitos humanos é flagrado em desavergonhada cumplicidade com bandidos responsáveis por todo tipo de barbaridade. Uma amostra dos efeitos perversos deixados por décadas de ausência do estado.

Na rota do dinheiro sujo

Quando a polícia ocupou o complexo do Alemão, o maior conjunto de favelas do Rio de Janeiro, vieram à tona cartas e extratos bancários até então bem guardados pelos bandidos naquele QG do tráfico. Com base em valioso material, que nos últimos meses esteve sob investigação, a Polícia Civil deflagrou, na semana passada, uma operação que se ramificou por cinco estados (Rio de Janeiro, Paraná, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais e São Paulo). Nunca se havia rastreado de forma tão minuciosa o caminho percorrido pelo dinheiro de uma organização criminosa no país. Composta de centenas de contas em nome de laranjas e empresas-fantasma, a rede que alimentava as engrenagens do comércio de drogas foi arquitetada dentro da cadeia pelo traficante Luiz Fernando da Costa, o Fernandinho Beira-Mar, que fazia suas ordens chegar aos comparsas por meio de bilhetes escritos de próprio punho (suspeita-se que parentes e advogados se encarregavam de entregá-los).

Ainda que a investigação não esteja concluída, as cifras registradas em apenas cinco das empresas que serviam ao esquema já são espantosas: em um único ano, 62 milhões de reais passaram pelo caixa, para então seguir para uma turma de doleiros. Foi possível detectar remessas que eles faziam ao Paraguai, Bolívia e Colômbia para pagar por armas e drogas que abasteciam a quadrilha. O passo seguinte será tentar esquadrinhar a rota do dinheiro sujo até, quem sabe, chegar a esconderijos em paraísos fiscais espalhados pelo mundo - hipótese levantada pela polícia. "Há muito ainda que desbravar sobre a teia criminosa montada por Beira-Mar", diz o delegado responsável Flávio Porto. Com o que se tem até agora, já foi possível desarticular uma artéria vital do esquema.

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