Branca de Neve entre os monstros
MARCELO COELHO
FOLHA DE SÃO PAULO - 30/03/11
BONECOS DE pano mutilados. O Capitão Gancho numa cadeira de rodas. A cabeça, ainda sangrando, de um leitão gigantesco. Um pai de família desacordado, exposto à curiosidade sexual da filha pequena. Uma noiva gorda, na terceira ou na quarta idade, depositando os seios nus sobre a mesa do banquete.
Essa é a linha das pinturas em grande formato da portuguesa Paula Rego, em exposição na Pinacoteca Estadual até 5 de junho. Nascida em 1935, ela vive há quase 60 anos na Inglaterra. Trata-se de sua primeira retrospectiva na América Latina.
São cenas de pesadelo; mas parecem ter sido produzidas com uma alegria esfuziante. "Pinto para dar um rosto aos meus pavores", declarou a artista. Só que a primeira impressão de quem entra nos corredores refrigerados da exposição é a de um mundo iluminado pelas cores mais vibrantes.
O amarelo-limão e a prata de uma janela aberta vêm quebrar, sem violência, um conjunto de cinza-chumbo e de azul na parede em que se encosta, pensativa, uma criada descomunal e cavalar.
Na maior parte das vezes, Paula Rego prefere usar o pastel em vez da tinta a óleo. O recurso, em obras de grandes dimensões, dá às cenas mais bizarras uma luminosidade feliz.
O vestido salpicado de violeta e rosa, brilhando como cetim, extravasa de uma poltrona de veludo cotelê, enquanto da massa crespa dos cabelos pretos da mulher (será uma menina? Será uma anã?) nasce um laço de fita rosa e prata.
Os traços da modelo são meio brutalizados, e ela segura no colo a enorme cabeça empalhada de um veado. No fundo, minúscula, uma mulher de preto se ajoelha. Nome do quadro?
"Branca de Neve Brinca Com os Troféus de Caça do Seu Pai". Outro quadro, espetacular, mostra a mesma personagem contorcida verticalmente ao longo da tela, depois de ter mordido a maçã envenenada.
Muitas passagens de histórias infantis (especialmente nas versões de Walt Disney) se pervertem ao extremo nas mãos de Paula Rego. Outras imagens não têm referência imediata: parecer vir de histórias pessoais de que não temos a chave.
Cenas de crucifixão e guerra trazem mulheres com máscaras de animal. Homens vestidos de mulher se estendem no colo de mulheres que parecem homens. Um torturador, como se fosse um transexual de bigode, surge sorridente entre equipamentos de jardinagem.
Às vezes, é o puro retrato, de corpo inteiro, de mulheres sólidas, amassadas e grossas que produz no espectador o espanto, sempre bem-vindo, do realismo na pintura, lembrando as obras de Lucien Freud, com toques de Max Ernst e dos mestres espanhóis (Velázquez, Goya, Zurbarán). Os quadros são realistas, mas como em todo grande artista, mostram uma realidade que ninguém tinha visto antes.
É naturalmente difícil interpretar o que se passa em muitas cenas. Duas coisas parecem repetir-se, entretanto. A primeira é a desproporção: pessoas muito pequenas contracenam com outras enormes. Velhinhos minúsculos são tratados por enfermeiras titânicas.
A segunda é a inversão das relações de gênero: mulheres são pintadas como se fossem homens, e homens se emasculam, a ponto de se transformarem em bonecas, ou de se tornarem objeto de operações de corte e costura.
O crescimento e a diminuição da figura humana têm uma longa história -e está presente em algumas obras da literatura infantil (e adulta) pelas quais tenho grande ojeriza: "Alice no País das Maravilhas" (a menina muda de tamanho a toda hora) e "Viagens de Gulliver".
Certamente, em Paula Rego tudo se passa como se a idade mental de um ser humano fosse traduzida em suas dimensões físicas. O velho com Alzheimer é o bebê nos berçários trágicos que ela pinta.
A sexualidade passa por processo semelhante. No quadro "A filha do policial", uma mocinha prestimosa está engraxando as botas do pai. Mas seu braço, enfiado até o fundo do calçado, é que assume o poder fálico; a menina vira homem, vira quase quadrúpede.
Crescer, mantendo-se pequena; ganhar músculos, mantendo-se mulher; virar objeto, sendo homem. Tornar-se brutal, por ter sido vítima da brutalidade. Continuar humano, sendo cavalo, cachorro, boneco. As histórias de Paula Rego são, no fundo, as de qualquer um de nós.
P.S.: Fico de férias em abril. Até a volta.
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