quarta-feira, março 30, 2011

ILAN AVRICHIR

Sistemas de avaliação de desempenho no Brasil
ILAN AVRICHIR
O Estado de S.Paulo - 30/03/11

Os jornais publicaram recentemente notícias, de profundidades variadas, sobre o conflito que se instaurou entre músicos e maestro na mais tradicional orquestra sinfônica do País. No epicentro, a decisão do regente de aplicar provas aos músicos como parte do que ele qualifica como esforço de melhoria contínua do nível artístico do conjunto.

Como toda crise, essa não foi provocada pelo fato que a fez eclodir. Existe um contexto favorável ao seu surgimento: dificuldade de obter fontes de financiamento para a manutenção de bons conjuntos, indefinições quanto ao papel do Estado na sustentação das orquestras, falta de apoio da maioria dos setores da sociedade, etc. Sobre esses aspectos bastante se escreveu nas últimas semanas.

Meu objetivo, aqui, é chamar a atenção para um aspecto da cultura organizacional brasileira, fundamental para o aperfeiçoamento da qualidade da gestão e que corre o risco de passar despercebido nesse episódio. Trata-se da dificuldade de estabelecer sistemas de avaliação de competência, desempenho ou mérito.

No meio acadêmico, no qual atuo, destaco dois episódios relativamente recentes. Um foi a iniciativa de instituir a avaliação de docentes na Universidade de São Paulo (USP). Vários professores vieram a público protestar contra a medida, sindicatos mobilizaram-se e os seus propositores foram apresentados das piores maneiras possíveis. Outro foi a introdução da avaliação dos egressos - primeiro, por meio do "Provão" e, atualmente, do Enade. A ambos se opuseram, entre outros, os estudantes, que chegaram a sabotar o exame. Até hoje, sob argumentos diversos, os egressos da USP e de universidades federais não se submetem a essa avaliação.

A professora Lívia Barbosa, no livro Igualdade à Brasileira, documenta como são recorrentes as tentativas de que o acesso a cargos e a progressão nas carreiras, no Brasil, se faça em função de mérito e competência, e como são igualmente repetidos os ataques a esse tipo de iniciativa e o seu fracasso. Ela chama a atenção para o fato de que a primeira Constituição brasileira, de 1824, já consignava que a admissão aos cargos públicos se faria sem outro critério que não o dos "talentos e virtudes" dos postulantes. A Constituição de 1891 reafirmou as condições de capacidade como critério de acesso. E as Cartas de 1937, 1946, 1967, 1969 e 1988 estabeleceram que o critério de admissão deve ser o concurso aberto. No entanto, os projetos para concursos públicos apresentados ao Congresso Nacional são, um a um, arquivados ou têm curta duração. O Departamento Administrativo do Serviço Público (Dasp), criado no governo Getúlio Vargas, que teve, entre outros, o papel de fiador da modernização dos serviços públicos, foi sistematicamente proibido de realizar exames competitivos. A Constituição de 1988 foi acompanhada de manobra para conceder estabilidade aos funcionários não concursados à época. Recentemente, assistimos a embate no Congresso em que tabeliães defenderam seu direito de se manter à frente de cartórios em contraposição a profissionais concursados, em flagrante afronta ao que estabelece essa mesma Constituição.

Como ressalta Lívia, as pessoas dizem-se adeptas da meritocracia. Quase todas as ouvidas por ela concordaram que o desempenho deve ser o principal, se não o único critério de avaliação de funcionários. Mas, sob argumentos diversos, os que são diretamente envolvidos na implementação desse tipo de sistema terminam por ser contra. Rompimento da solidariedade entre os afetados, intensificação predatória da competição, ameaça às conquistas sociais, redução da qualidade produzida são alegações recorrentes.

Não é nosso propósito sustentar que a adoção de sistemas de avaliação de competência e desempenho tenha apenas aspectos positivos e quem se opõe a eles nunca tenha razão. Tampouco afirmar que aqueles que utilizam sistemas meritocráticos não cometem erros. Introduzir mudanças é projeto delicado. Precisa ser precedido e acompanhado por vários cuidados e técnicas. Mais básico e genérico é o que Kurt Lewin chamou, há mais de 50 anos, de descongelamento: a instalação, entre os afetados, da percepção dos benefícios, se não da inevitabilidade, da mudança.

No caso em questão, a avaliação de desempenho na Orquestra Sinfônica Brasileira, não é possível saber a distância se esses cuidados foram tomados. Várias coisas, no entanto, parecem problemáticas. O maestro afirmou, em entrevista publicada no Estado (12/3), que "as provas, desde o início, são apenas um elemento, parte de um processo mais amplo. (...) As audições têm como objetivo identificar as deficiências e oferecer aos músicos um feedback, para que eles possam se aperfeiçoar, refinar sua arte". As avaliações teriam, portanto, um caráter formativo, e não excludente. Nada sugere, contudo, que a forma como os resultados das provas se integrarão ao processo de avaliação de desempenho esteja definido, claro e comunicado aos músicos. Tampouco em que situações desempenhos considerados ruins podem resultar em demissão, situação que parece assustar mais os músicos.

Nesta, como em outras situações semelhantes, creio que o caminho seria discutir os benefícios e problemas das avaliações, minimizar seus aspectos disfuncionais, admitir erros eventuais na condução do processo, lidar com receios reais e imaginados dos afetados e seguir adiante. As evidências de que as avaliações de desempenho e a meritocracia trazem benefícios muito superiores aos problemas que causam são muitas e generalizadas. A introdução desse tipo de sistema na administração pública e privada no Brasil trará benefícios à eficiência da máquina estatal, competitividade à empresa privada e avanço às instituições democráticas.

PROFESSOR, É DIRETOR NACIONAL DA GRADUAÇÃO EM ADMINISTRAÇÃO DA ESPM

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