quarta-feira, fevereiro 23, 2011

MARCELO COELHO

Truques sem mágica
MARCELO COELHO
FOLHA DE SÃO PAULO - 23/02/11

"DÁ PARA sair bastante feliz (e aliviado) de "O Discurso do Rei", o filme altamente "oscarizável" de Tom Hooper.

Um rei gago, um especialista em problemas de fala, uma causa nobre (unir a Inglaterra na luta contra Hitler), a atuação espantosa de Colin Firth no papel principal... o que mais se pode desejar?
Arrisco a opinião de que o filme de Tom Hooper é ao mesmo tempo adequadíssimo para ganhar o Oscar e, talvez, insuficientemente hollywoodiano. O filme não tem muitas surpresas a serem estragadas, mas aviso que este artigo menciona detalhes da sua história.
Caso de gagueira extrema, o duque de York (Colin Firth) reluta em cuidar do seu problema; já se encheu de especialistas e tratamentos inúteis. Surge então, como última esperança, o australiano Lionel Logue (Geoffrey Rush), cujo consultório caindo aos pedaços o duque visita e abandona, furioso, logo em seguida.
O espectador já sabe: essa briga inicial entre o terapeuta e o paciente (assim como outras ao longo do filme) só existe para ser superada logo em seguida, valorizando a harmonia do desfecho.
Até aí, estamos no cinema norte-americano convencional, sem maior brilho. Mas "O Discurso do Rei" foge do modelo na medida em que a história acaba sem grande milagre terapêutico.
O especialista vivido por Geoffrey Rush não descobre, como seria divertido de assistir, o método mágico de curar seu paciente da gagueira. Tudo se resume a um trabalho de paciência, com a superação de pequenas dificuldades isoladas, com exercícios de vários tipos -o que traz a vantagem de manter o espectador sempre em estado de incerteza quanto ao desempenho vocal do protagonista.
Talvez o defeito seja meu, mas fiquei a todo momento esperando que o pobre rei George e seu fonoaudiólogo descobrissem o truque, o passe de mágica que resolvesse a gagueira de uma vez por todas.
O problema é que o passe de mágica, estranhamente, já tinha aparecido no começo do filme -sendo esquecido depois.
Lembrando: na primeira consulta com Geoffrey Rush, Colin Firth teve de declamar o solilóquio de Hamlet diante de um microfone. Enquanto isso, fones de ouvido faziam uma gravação de música clássica entrar em sua cabeça a todo volume.
Miraculoso resultado: sem ouvir a própria voz, o duque despachava os versos de Shakespeare sem gaguejar nada.
Por que, então, não utilizar o mesmo truque, que já tinha dado certo, na hora decisiva do filme, quando o discurso real de declaração de guerra será transmitido pelo rádio aos súditos do Império Britânico?
E por que, numa hipótese menos honesta, não transmitir uma gravação editada do discurso? Numa derradeira hipótese, definitivamente canalha, poderiam colocar um locutor diante do microfone e dizer que era o rei quem estava falando...
Imagino que nos dias de hoje esse recurso seria adotado sem hesitação. Nossa convivência com a artificialidade dos meios técnicos e com a desonestidade dos procedimentos políticos não encontraria nenhum grande impedimento moral a essa alternativa.
Aparentemente, na Inglaterra de fins da década de 30 havia um "fair play" político maior do que na Alemanha de Hitler e na Rússia de Stálin. Se a BBC dizia que o discurso era do rei, teria de ser do rei o discurso.
Se os personagens se envolvessem numa discussão dessas alternativas, o filme de Tom Hooper talvez ganhasse em atualidade e tensão política.
A opção de "O Discurso do Rei", entretanto, é mais simples: trata-se de contar, pela centésima vez, uma bela história de superação e persistência. Soma-se isso a obsessão central de nossa época: a ideia de que, por mais rica e poderosa que uma pessoa seja, ela será sempre igual a nós (um pouquinho mais infeliz, de preferência).
Gagueiras, bebedeiras, tropeções, lágrimas, desgraças de celebridades. Mas, se possível, com final feliz. Ainda que tão humanas e fracas quanto nós, as pessoas especiais têm tarefas especiais a cumprir; e como são fortes e sobre-humanas nisso!
Superioridade de desempenho, em inferioridade de condições. É preciso ser no mínimo um duque britânico para conseguir isso. A plebe se encanta e aplaude; "O Discurso do Rei" é bom de assistir, e faz bem ao nosso espírito, impregnado de democracia e desigualdade ao mesmo tempo".

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