terça-feira, junho 15, 2010

ARNALDO JABOR

De novo, a pátria está de chuteiras
ARNALDO JABOR

O GLOBO - 15/06/10

Hoje temos Brasil X Coreia do Norte. Acho que daremos um baile naqueles pobres diabos, peões de uma ditadura repelente. Mas também recomeça mais uma campanha de reafirmação nacional. O pentacampeonato nos trouxe um orgulho que os antigos vira-latas não tinham, mas, de novo, a pátria calça chuteiras para esquecer as frustrações de um povo pobre e sacrificado.
Pessoalmente, carrego uma grande frustração: não entendo de futebol. Tudo se deve ao trauma de frangos que engoli na infância do colégio, eu goleiro do A-3. Sem habilidade para dribles estonteantes, fui várias vezes barrado e humilhado, o que me fez virar as costas ao nobre esporte bretão.
Hoje me arrependo. Queria ser como Sérgio Augusto, Rui Solberg, José Miguel Wisnick, Dan Stulbach e outros que sabem tudo e gozam de uma cultura alegre, lúdica, que eu não tenho. No filme que acabo de montar, há várias referências a futebol, todas fornecidas por entendidos.
Perguntei ao Rui Solberg, por exemplo, qual o time do América em 1951. Ele desfilou ali na bucha: "Osny, Joel e Osmar, Rubens, Oswaldinho e Godofredo...". Sérgio Augusto eu testei: "Quem fez os gols do Botafogo em 57, na vitória do campeonato?" Na hora: "Cinco gols de Paulinho Valentim...".
Lamento não ter essa cultura linda e brasileira. Minha lembranças são esparsas e doloridas.
Não me levaram ao Brasil X Uruguai em 50 - eu era muito pequenininho. Mas me lembro de meu avô, chorando e dizendo: "Só se ouvia o som dos pés das pessoas descendo as rampas. Ninguém falava. Só se ouviam os sapatos". Era o silêncio dos sapatos.

Por isso, sempre me lembro de Paulo Perdigão, filósofo e boleiro que afirmava que a vitória em 50 teria sido essencial para o progresso nacional. Perdigão já morreu, mas desenvolveu uma teoria em seu livro "Anatomia de uma Derrota": o Brasil seria outro país se tivéssemos ganhado "aquela" Copa "naquele" ano. Talvez não tivesse havido a morte de Getúlio nem a ditadura militar. Talvez ele tivesse razão.
A vitória em 50 teria sido essencial. "Foi uma derrota atribuída ao atraso do país e que reavivou o tradicional pessimismo da ideologia nacional: éramos inferiores por um destino ingrato. Tal certeza acarretou nos brasileiros a angústia de sentir que a nação tinha morrido no gramado do Maracanã...". E aí ele escreveu a frase rasgada de dor: "Nunca mais seremos campeões do mundo de 1950!".
A partir desse dia, associei futebol e país, numa "tabelinha" histórica. As taças de 58 e 62 marcaram um momento de abertura econômica e de progresso cultural jamais vistos: JK, Brasília, Bossa Nova, cinema, teatro, reformas populares em um país novo.
Mas a esperança seria arrebentada em 64, pelo golpe. A Copa de 70 teve um sabor amargo e doce, sob o sinistro sorriso do ditador Médici. Eu imaginava torturadores e torturados no "pau-de-arara", todos torcendo pelo Brasil em 70.
Depois, vieram: a derrota das eleições diretas, a morte de Tancredo, que teve o mesmo gosto de fracasso de Brasil X Uruguai; depois, os anos Sarney, quando parecia que o Brasil nunca mais sairia do buraco, com a inflação a mil por cento ao ano, com a falência do Estado e a descoberta de que a "democracia real" não existia verdadeiramente dentro das instituições brasileiras.
O impeachment contra Collor (que renunciou e hoje beija o Lula...) e os caras-pintadas foram o "trailer" da vitória de 94, com o governo FHC raiando com "novas palavras". Quase no mesmo mês, derrotamos a inflação e viramos tetracampeões. Um novo tempo estava começando! Foi lindo!
Em 2006 perdemos porque não éramos a pátria de chuteiras; éramos chuteiras sem pátria. Nossos jogadores eram ricos e famosos, com brinquinhos na orelha, comendo louras vertiginosas. Para eles, o Brasil era a vaga lembrança de uma infância pobre, humilhada. Neles estava ausente a fome nacional querendo se salvar. Em 2006, nossos craques não perderam quase nada; tiveram apenas um mau momento entre milhões de dólares e chuteiras douradas pela Nike.
Faltava neles a lição profunda do grande Nenen Prancha do Botafogo: "Vocês têm de ir na bola como num prato de comida!...".
E, quanto mais o óbvio da fragilidade da seleção se repetia, mais o técnico Parreira se obstinava em sua lívida teimosia... Por quê? Porque o técnico é sempre contra a opinião geral, como fez nosso Dunga, rejeitando Ganso e Neimar e não dando nem um banco ao Ronaldinho Gaúcho.
Em 2006, Parreira também disse a frase suicida: "Não estávamos preparados para perder!...".

Isso é a morte súbita, isso é a guilhotina. Sem medo, ninguém ganha.
Só o pavor ancestral cria uma tropa de javalis profissionais para a revanche, só o pânico nos faz rezar e vencer.
E agora? Bem, se em 50 achávamos que a taça Jules Rimet nos salvaria da mediocridade, hoje temos uma seleção sem fantasias nem arte, como se o improviso fosse um pecado.
Dunga fala como se fosse um comandante militar na guerra; em vez de estimular a liberdade, o improviso, Dunga quer que o imponderável caiba em sua estratégia.
Além disso, os jogadores de hoje carregam outro peso: o Lula chamou-os num beija-mão semelhante ao que Médici fez em 70, pois não ia perder essa chance de propaganda.
Agora, os jogadores são portadores de uma "utopia realizada", pois segundo Lula-Brasil, "nunca antes" o país foi "melhor". Hoje, eles têm de carregar nas costas uma retomada da ansiedade de 60 anos atrás, só que agora para coroar uma fantasia narcisista e populista. Se Dunga perder, duvido que Lula os receba.
Mas é claro que tudo que desejo é vê-los de taça na mão, enfileirados diante do Nosso Guia, triunfante como um técnico transcendental.
No entanto, em toda Copa, eu sempre tremo ao ouvir a voz de Paulo Perdigão, com medo de que ele tenha sentenciado nosso destino: "Nunca mais seremos campeões do mundo de 1950!".

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