Decepções globais
Antonio Machado
CORREIO BRAZILIENSE 28/05/10
Moeda encolhe no mundo, Geithner alerta Europa sobre o risco de deflação e crise toma novos rumos
Uma das consequências da grave crise que abalou as estruturas do crédito e do mercado financeiro em todo o mundo tem sido a revisão de sólidas verdades, o ressurgimento de outras arquivadas no museu da teoria econômica e a emergência de consensos flutuantes.
Se a “ciência” da economia e seus mais notórios porta-vozes estão confusos, sua “clientela” no mundo da política e dos negócios está no mato sem cachorro. Tome-se o caso dos governos europeus.
Acuados pelo pé-atrás dos mercados financeiros quanto à solvência dos países mais frágeis da Zona do Euro e mesmo do futuro da moeda única, reagem com corte de gastos públicos e aumento de impostos.
Grécia, Portugal, Espanha, Itália, França, nessa ordem, cortaram salários e aposentadorias do funcionalismo público. Os primeiros aumentaram impostos sobre a renda e o consumo. A Alemanha cortou as asas de operações no mercado futuro com títulos, ações e moeda. E a própria União Europeia desarquivou a ideia de tributar ativos, passivos e/ou o lucro de bancos e grupos financeiros.
O fim é encolher o custo do Estado, o consumo interno, reforçar o Tesouro nacional e tentar reerguer a economia pela exportação. É a receita clássica do FMI — afora essa espécie de CPMF global, que, no entanto, o Fundo apoia —, seguida uma década atrás pelos países emergentes que formam o poder em ascensão na geopolítica global.
A dúvida é se tal receita, que implica enorme ônus social, ainda se aplica numa época em que a informação circula em tempo real, a aversão da sociedade à austeridade fiscal é maior e o mundo rico é desafiado pela indústria e lavoura de baixo custo das ex-colônias.
Para começar, tem de haver base industrial ou agrícola moderna ou em formação pronta para competir no mercado global com incentivos adequados. Portugal e Grécia são vazios econômicos. A própria Zona do Euro, à exceção da Alemanha, só será competitiva fora da área protegida da União Europeia se encolher o seu sistema de bem-estar social — o alicerce político de sua unidade e prosperidade.
Talvez tenha sido esse o senso do alerta do secretário de Tesouro dos EUA, Timothy Geithner, que foi a Londres e Frankfurt, ontem, e hoje chega a Berlim. “A grande lição da crise financeira nos EUA”, disse ele, com a sutileza de elefante da diplomacia americana, “é que você tem de agir rápido e com força”. Soou aos interlocutores de Geithner como crítica, dada a lerdeza da Europa para agir. Mas também tem a ver com os riscos de induzir uma recessão saneadora.
Europa fala e não age
A tradução literal do chamado de Geithner é que a Europa não tem de ficar falando do tamanho do pacote de ajuda aos países de 750 bilhões de euros, cerca de US$ 1 trilhão, tem de gastá-lo logo. À Alemanha sugeriu, nas entrelinhas, que a chanceler Angela Merkel cesse suas ações regulatórias unilaterais no mercado financeiro, deixando-as para um acordo internacional, como estudado pelo Grupo dos 20 (G-20), a coalizão de países ricos com os maiores emergentes.
“Não faz sentido”, escreveu o estrategista John Ross Crooks, do fundo australiano Black Swan Capital, “Geithner mover publicamente o pote (de problemas) da Europa, quando já há grandes divergências em movimento.” A Europa está dividida sobre a reforma bancária.
EUA enxugaram o dólar
Os conflitos de governança da União Europeia, contudo, são só um naco de um problema maior e mais sério: a redução global da moeda, e não só do multiplicador bancário e dos derivativos de todo tipo, que inundaram a liquidez no mundo criando a ilusão do ganho fácil.
Isso diz respeito à medida de moeda da época em que banco central controlava inflação regulando a emissão monetária e não apenas com os juros. Por tal metro, a oferta do chamado M3 (conceito de meios pagamentos ampliado, que soma o dinheiro em circulação aos depósitos à vista e aplicações de prazo curto) está em queda, nos EUA, desde o início de 2009. Isso explica a deflação dos mercados.
A ajuda que prejudica
O economista Tim Congdon, da empresa americana de pesquisas IMR, apurou tal anomalia, e a sua constatação correu o mundo econômico.
Ela dá fundamento quantificável à magia de as economias em crise terem sido resgatadas com enorme fluxo de moeda sem provocar uma gota de inflação. Mas alerta para outro fato: que parte da alta dos mercados de ações, papéis de dívida e commodities desde o ano passado aconteceu no vazio, inflada sobretudo pelas expectativas.
Em tal cenário, o ajuste recessivo na Europa tende a piorar, em vez de aliviar, a solvência dos países endividados, além de forçar uma onda de deflação. É isso o que Geithner deve ter visto.
Eles nadavam pelados
Nada é mais pertinente com a imagem do bilionário Warren Buffet, segundo a qual a ressaca da crise iria mostrar quem estava nadando pelado, que a prescrição da União Europeia contra a insolvência da região, ou seja, recessão. O que aos governantes europeus revelam é a ignorância sobre o que embalava a prosperidade anterior.
Ela surgiu dos desequilíbrios globais, sobretudo entre superavits da China e deficits dos EUA. E, na Europa, entre Alemanha, espécie de China do euro, e os vizinhos mais fracos, sem economia, vivendo de dívida bancada por bancos alemães e outros europeus. Poderosos, os EUA enrolam a China. Fracos, Grécia, Espanha, Portugal, não têm a quem apelar. O G-2, de China e EUA, vai submetendo a todos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário