terça-feira, novembro 10, 2009

MARCOS NOBRE

Quem derrubou?


Folha de S. Paulo - 10/11/2009

"QUEDA" É UMA palavra que liga a Revolução Francesa de 1789 à revolução alemã de 1989. Mas a ligação pode ser enganosa. A Bastilha caiu porque foi tomada de assalto. No caso do muro de Berlim, muitas explicações até hoje parecem dizer que muros caem por si mesmos. A grande encenação oficial de ontem foi a da queda de dominós enfileirados. Como se o muro tivesse caído por força da gravidade.
Até hoje, o sentido e o significado da Revolução Francesa são objeto de controvérsia e de disputa. Mas, já em 1789, era tido e havido como certo que o sujeito da transformação era "o povo". A disputa, ontem como hoje, é para determinar quem é afinal "o povo".
No caso do 1989 alemão, há muito pouca clareza sobre a quem se deve atribuir o fim das ditaduras igualitaristas do Leste Europeu.
São muitos os candidatos. Mas a grande maioria das explicações parece sempre querer dizer que as transformações, de alguma forma, vieram de cima.
Há quem as atribua às forças impessoais e sistêmicas, como o capitalismo, ou à ineficiência do planejamento soviético. Ou, ao contrário, há quem ache que foram lideranças políticas excepcionais que dirigiram com maior ou menor clareza os acontecimentos. A Igreja Protestante enfatiza seu papel na Alemanha, assim como a Igreja Católica realça o seu na Polônia. Há mesmo quem ache que a motivação principal foi o desejo de consumo dos habitantes do socialismo real. E por aí vai.
São ainda incipientes as tentativas de colocar toda a série inusitada de sobressaltos cotidianos em perspectiva histórica, de mostrar que os acontecimentos de 1989 resultaram de movimentos e transformações que vinham de longe. E que vinham de baixo, da base da sociedade, que não eram simplesmente dirigidos e guiados de cima.
Mas, até onde posso ver, essas tentativas ainda não convencem.
Pode ser que, no caso alemão, essa limitação esteja ligada ao próprio processo de unificação das duas Alemanhas. Em lugar da convocação de uma Assembleia Constituinte, por exemplo, ocorreu uma "reunificação" a toque de caixa, dirigida de cima e apresentada como fato consumado. Essa forma impositiva e sumária limitou a organização e a expressão pública de vozes que, vindas de baixo, teriam talvez dado uma direção e um sentido diferentes ao processo.
Mas é possível que a dificuldade seja ainda mais profunda. Depois que ficções coletivas reais como "povo", "nação" e "classe" perderam sua força e seu sentido, pode ser que a dificuldade de enunciar o sujeito da queda do muro revele a dificuldade de saber afinal quem hoje faz a história.

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