quinta-feira, agosto 27, 2009

EUGÊNIO BUCCI

O amor e a dor do senador


O Estado de S. Paulo - 27/08/2009
Dia desses, quando lhe perguntaram por que não deixava o Partido dos Trabalhadores logo de uma vez, seguindo o exemplo de Marina Silva, o senador Eduardo Suplicy (SP) saiu-se com uma tirada pouco ortodoxa, bem ao seu estilo. "Se você está em uma família e uma pessoa da sua família cometeu algum procedimento inadequado, você sai da família?", ele indagou, para responder em seguida: "Normalmente, não saio da minha família. Batalho para corrigir o que aconteceu."

A analogia é imprópria, em todos os sentidos. Partidos políticos se estruturam em torno de programas que sintetizam ideias, projetos e metas comuns. Quando descumprem ou traem seus propósitos declarados, um filiado tem, sim, razões objetivas para romper. Partidos são associações racionais entre indivíduos livres e seus vínculos internos são de natureza política, não familiar. Seus militantes, quando dignos, são leais a ideias, não a pessoas.

Já as famílias se definem por laços de sangue, remontam a gerações passadas e se estenderão aos que ainda não nasceram. Queiram ou não, seus membros pertencem às teias de parentesco que os precedem, não importa o que possa acontecer. Assim, a instituição familiar costuma suscitar no seu seio o sentimento de lealdade pessoal. Os vínculos de lealdade podem-se estender para além dos laços sanguíneos, em aglutinações expandidas. Esse tipo de lealdade pode degenerar em formações perversas, é claro. Basta ver, por exemplo, o caso da Máfia, que se designa, não por acaso, como famiglia: lealdade até a morte. Mas a Máfia aparece aqui apenas como uma deformidade excepcional que confirma a regra: no mais das vezes, as famílias se tecem por elos de proteção recíproca, de amparo e de amor.

Feita a devida separação sistemática entre o que é família e o que é partido, admitamos: o senador expressou uma verdade, a sua verdade interior; o que ele declarou é que a ligação que mantém com o PT é, mais que política, amorosa. A partir daí, a sensação que fica é a de que, quando os postulados políticos se esboroam, quando deles nada mais resta que explique a identificação partidária, sobra, enfim, o amor, como aquele que pulsa nas famílias, mesmo quando a razão enlouquece. O senador Eduardo Suplicy parece hoje um mártir do amor que o prende ao PT.

Na terça-feira, quando subiu à tribuna do Senado para pedir, ainda uma vez, a renúncia do presidente da Casa, José Sarney, foi isso, de novo, que transpareceu. "Para voltarmos à normalidade do funcionamento desta Casa, o melhor caminho é que o sr. Sarney renuncie à presidência do Senado", proclamou. Com outra de suas tiradas heterodoxas, brandiu para o plenário uma versão agigantada de cartão vermelho, desses que nos jogos de futebol são empregados pelo árbitro para expulsar um jogador de campo.

O gesto desportivo-teatral foi deveras apelativo e, como de hábito, os críticos dirão que o senador petista só faz "jogar para a torcida". Uns farão piada, outros alegarão que essa fatura, a do afastamento de Sarney, já tinha sido liquidada quando o Conselho de Ética decidiu arquivar as denúncias contra ele e que Suplicy discursou com o único objetivo de preservar a própria imagem. Foi, aliás, nessa linha que Heráclito Fortes (DEM-PI) o aparteou com solene ironia. Sustentando que o presidente Lula invadiu o campo do Senado para articular a defesa de Sarney, Fortes perguntou ao orador se ele seria capaz de mostrar o mesmo cartão vermelho para o chefe de Estado. De quebra, disse que faltava sinceridade ao petista.

Ao ver questionada a sua boa-fé, Eduardo Suplicy não soube esconder a perturbação. Alterou-se. Retrucou e foi retrucado. Estapeou a tribuna em que repousavam as folhas de seu discurso. A voz apertou-lhe na garganta. Seus lábios se retorceram. Ele inspirava insistentemente pelo nariz, como que para aplacar um soluço que não veio. Em sua fisionomia se estampou a mais perfeita expressão de dor. Ele admitiu que mostraria seu hipertrofiado cartão vermelho a quem quer fosse, mas a dor continuou ali.

Continuou ali, mas talvez não tenha sido entendida. Os que acreditam que tudo na política se resolve na interlocução decorativa, na base do "Vossa Excelência" pra lá, "Vossa Excelência" pra cá, que aprenderam a conviver olimpicamente com os arroubos de ódio dos insultos que de vez em quando desferem uns contra os outros, entendem muito bem a raiva, entendem a vingança, o ressentimento, o ciúme e a vaidade ferida, mas jamais entenderão aquela dor. Ela não brota das trincas de uma coerência perdida, ela não se constrói na oratória, mas nasce do coração - esse termo tão desgastado pela demagogia e que, no entanto, dá nome a uma região da gente que existe de verdade. Para senti-la são necessárias décadas de sonhos sonhados de corpo inteiro, que de repente se despedaçam nas garras dos semelhantes. Para conhecê-la é preciso um pouco de fragilidade, mesmo que escondida por trás da imponência artificial do homem público. Para compreendê-la há que saber o que é a vergonha.

Não, não faltou sinceridade às palavras de Eduardo Suplicy, por mais que o cálculo performático faça parte - embora paradoxal - de suas manifestações de ritmos verbais alongados, pesados. Mais do que muitos de seus pares, ele tem o senso da oportunidade, dialoga bem com a linguagem das manchetes e sabe atrair os holofotes com mais eficiência que campanhas publicitárias industrializadas - mas não mentiu. Que nada mais houvesse de sincero em sua fala, a sua dor é sincera. Ela é a luz apagada de um amor desencantado, desmembrado... partido.

Com sua dor sincera, o senador Suplicy ofereceu, aos que viram a TV Senado, o vislumbre de uma face humana, enfim humana, em meio a um teatro desfigurado de máscaras desumanas.

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