quarta-feira, junho 12, 2019

As consequências, entrementes... - ROSÂNGELA BITTAR

Valor Econômico - 12/06

O juiz associado ao investigador não é novidade no Brasil


Embora produtos de crime, as provas da relação funcional entre o juiz da Lava-Jato, hoje ministro Sergio Moro, e o chefe da força-tarefa da operação, procurador Deltan Dallagnol, têm valor e suas consequências imediatas já são notadas. Pelo que se pode antever, fazem mais mal a eles próprios do que às circunstâncias de seus cargos e carreiras, bem como daqueles por eles investigados e punidos.

Nesse episódio, não acontecer nada, ficar tudo por isso mesmo, é impensável. Esta é a convicção de especialistas dos meios jurídico e político. O que vem por aí, concretamente, porém, se conhecerá aos poucos. A Lava-Jato, para começar, não muda do seu atual estágio e temperatura. É jogo feito, já identificados e punidos centenas de corruptos, a cultura anti-roubo de dinheiro público se enraizando na preocupação da sociedade, formação de uma linha de combate à corrupção endêmica e muitos benefícios mais. A operação tinha perdido seu ímpeto com a saída do juiz Sergio Moro, continuará a existir, ainda que rotineiramente, diluída por outras varas, em outros Estados, um pouco mais morna.

Para o governo Jair Bolsonaro não fazem muita diferença as descobertas de agora. O benefício que Moro poderia levar a ele, em termos de popularidade e confiança, já levou. Aliás, Bolsonaro deve sua eleição, numa visão mais panorâmica, à Operação Lava-Jato e à campanha que procuradores realizaram, ao longo de cinco anos, contra os políticos em geral.

Interessa a Bolsonaro continuar mantendo Moro a seu lado não só pelo prestígio de que ainda desfruta o juiz como pela carreira política que poderão trilhar juntos. Enquanto popular e respeitado Moro for e estiver na ribalta, Bolsonaro será páreo para Lula, um ex-presidente revigorado se vier a sair da prisão. Moro fica no governo um pouco mais apagado, mas não por isso. Também porque não entregou ainda o que seria seu principal ativo para o futuro, uma ação notável na área de segurança pública.

Haverá, também, consequências na esfera legislativa. A lei do abuso de autoridade deve ser votada, entre outras iniciativas. Além dela, por exemplo, devem ressuscitar um projeto que cria a figura do juiz de instrução, que participa da investigação, determina busca e apreensão para reunir provas, mas não é o juiz que vai julgar o processo.

O Congresso, os políticos condenados e, sobretudo Lula, cuja defesa questiona exatamente a falta de isenção do juiz da Lava-Jato, o que agora teria sido comprovado, podem esperar por dias melhores. Se a tese da defesa do ex-presidente sair vitoriosa no julgamento de seu habeas corpus, no próximo dia 25, não se enxergará o fim da fila de vítimas da ação heterodoxa do juiz da Lava-Jato e do chefe da Força Tarefa. Para calcular a extensão dos pedidos de anulação de processo é preciso esperar pelo que vai acontecer com o ex-presidente.

A partir daí, várias pessoas dirão o que passaram e, também. se transformarão em vítimas do abuso dos condutores da operação. Advogados comentavam ontem um caso certo para a fila, o de Mônica Santana, mulher de João Santana, presos numa das primeiras operações da Lava-Jato. A ela destinaram apenas banho frio na cadeia, fato que parece raso a muitos mas torna-se denso no contexto atual. Muitas coisas desse tipo aparecerão, inclusive se divulgados diálogos que indiquem influência na indicação de delatores e inclusão de nomes nas investigações.

A Procuradoria-Geral da República talvez seja a instituição mais atingida pelas comprovações daquilo que já se desconfiava, que a Lava-Jato, apoiada pela sociedade de olhos fechados e abraços abertos, teve como maestro o juiz Sergio Moro e foi movida por instrumentos não irregulares, mas laterais à lei na investigação dos procuradores.

Vindo de uma sucessão de episódios que geraram discussão e desconfiança, a Procuradoria, de instância técnica, trasnformava-se rapidamente em campo de batalha política intensa. Estão aí, bem vivos, os casos mais recentes que registraram extremismo da PGR. Na operação Joesley, comandada por Rodrigo Janot, por exemplo, jogou-se aos leões o procurador Marcello Miller. Ali a instituição sentiu que andava fora dos eixos. Quando transformou-se em um poder a ser conquistado por disputa eleitoral, o sindicalismo passou a governar suas ações. Os procuradores hoje estão trabalhando para derrubar presidente da República, discutindo eleição presidencial, envolvendo-se na renovação do Parlamento, elaborando pacotes de leis. É possível imaginar tudo isso como resultado do seu trabalho, mas é possível também discutir em que momento a Constituição deu aos procuradores essas atribuições.

O segundo mais prejudicado pela revelação das provas da relação simbiótica entre juiz e investigadores é Sergio Moro. Peça fundamental para a Lava-Jato, o atual episódio revela que ele foi também o estrategista da operação, o condutor dos principais lances, consultado a cada novo passo.

Ele não é o primeiro nem será o último juiz a, no Brasil, imiscuir-se em investigação, transformar-se no que se convencionou chamar, no caso Satiagraha (onde atuaram Protógenes Queiroz, Rodrigo de Grandis e Fausto De Sanctis), de sócios ou associados na investigação. O juiz se transforma praticamente no comandante da operação, sugere caminhos, sinaliza o que vai aprovar ou desaprovar, como sugerem os diálogos entre Moro e Dallagnol.

O modelo, embora conhecido, encontrou seu cenário máximo na Lava-Jato, onde equipes de investigadores, policiais, auditores, procuradores, funcionavam sob a batuta do mesmo maestro.

Como tudo foi e é feito em nome do combate à impunidade, permitiu-se tudo e aceitou-se tudo. Até mesmo a discussão da denúncia entre investigador e juiz. A Lava-Jato foi uma fórmula quase mágica de acabar com a corrupção. Não acabou mas avançou.

As consequências da operação, no entanto, ultrapassaram o campo político e eleitoral, o que ainda não entrou na atual conta do episódio Moro-Dallagnol. Poucos se lembram de lamentar o destino das empresas que faliram, ou precisaram demitir milhares de trabalhadores e paralisar obras. Sem que fosse esboçado um mero gesto de preocupação.

Peso real, uma ideia sem lastro - HELIO BELTRÃO

FOLHA DE SP - 12/06

Moeda única para Brasil e Argentina parece ser o peronismo pela porta da frente


O ministro Paulo Guedes, em recente visita à Argentina, sugeriu a integração monetária do Brasil com a Argentina, com a criação de uma moeda única que substitua o real e o peso: o peso real. Faz sentido? Dada a urgência de nossos atuais problemas, a peripécia não parece produtiva.

O euro é o experimento que mais se assemelha à ideia do peso real até hoje. Está longe de ter se provado exitoso, em especial após a grave crise da Grécia. Foi criado por burocratas e imposto de cima para baixo, sem vias de saída.

O comitê de especialistas em ciência, literatura e artes formado em 1994 para escolher heróis europeus cujas faces figurariam nas novas cédulas desistiu da ideia após dois anos. Como aceitar Beethoven, aquele que homenageou Napoleão? Ou Mozart, o maçom? Ou Aquino, o católico dogmático? E como fica o equilíbrio entre os gêneros?

Os heróis acabaram engavetados em prol de obras de arquitetura não identificadas que driblaram as aguçadas sensibilidades de gênero, religiosa, ou política dos millennials que adotariam a moeda a partir de 2002. Por aqui, um processo decisório similar corre o risco deflagrar as hostilidades mais graves desde a crise da Província Cisplatina.

Nunca havia existido uma moeda sem um lastro em uma commodity, um país soberano, ou uma base de impostos única. Nesse sentido, o euro é a primeira moeda abstrata pós-moderna.

O garoto-propaganda do euro foi o socialista Jacques Delors, que era presidente da Comissão Europeia. A França desejava se livrar do controle indireto imposto pelo Bundesbank, que a coibia de inflacionar para fazer frente a gastanças.

Ainda em 1988, Margaret Thatcher intuía a raiz do problema. Em um trocadilho, dizia que o euro é “socialism through the back Delors”, ou uma porta dos fundos para a adoção do socialismo. Aqui, o peso real parece ser o peronismo pela porta da frente mesmo.

Toda moeda “fiat”, monopolista e imposta por decreto como as atuais necessita de um comitê que determine sua oferta, como é o caso do Copom no Brasil.

Um camelo é um cavalo planejado por um comitê; o nome do camelo é peso real. Não há nada mais socialista que um comitê que controle a moeda: o Politburo que tabela os juros a cada 45 dias. Se você está obrigado a usar uma moeda gerida por um comitê, o ideal é que você esteja nele. Mas não se iluda: essa é uma reserva de mercado de uma pequena elite de banqueiros.

No Conselho de Governança do euro, cada um dos 19 países tem um assento, com um voto cada um. Uma “democracia representativa” similar no peso real significaria seguramente a volta da ingerência política de interesses corporativos, tal qual se observava no Conselho Monetário Nacional dos anos 1970 e 1980.

Durante a vigência do padrão-ouro clássico, de 1819 a 1931, as chamadas “algemas de ouro” impediam que gestões fiscais irresponsáveis fossem sancionadas por aventuras inflacionárias promovidas pelo banco central, pois entrava em curso o mecanismo automático de fluxo de ouro descrito por Hume, que forçava a reversão da política expansionista anterior e a reposição das reservas internacionais.

Porém, no século 20, os governos consolidaram seu controle, substituindo uma moeda razoavelmente protegida da ganância dos políticos por uma moeda “fiat”. Sem nenhuma surpresa, as crises de inflação e de balanço de pagamentos passaram a ser mais frequentes.

Uma moeda mais honesta requer a separação entre a divisa e os interesses concentrados. É preciso uma moeda de reserva exógena, que nos livre de comitês. O peso real será pior que o statu quo, pois terá que acomodar interesses supranacionais inflacionistas.

Helio Beltrão

Engenheiro com especialização em finanças e MBA na universidade Columbia, é presidente do instituto Mises Brasil.

Por que é difícil sair desta crise? - VINICIUS TORRES FREIRE

FOLHA DE SP - 12/06

País tem síndrome múltipla, 40 anos de crise crônica e uma década de loucura


A construção civil acha que vai crescer 0,5% neste 2019. Em janeiro, esperava avançar ainda medíocres 2%. A estimativa é da FGV, feita para o SindusCon de São Paulo, anunciada nesta terça-feira (11).

Sem obras, vai ser difícil sair da crise. Metade do investimento (em máquinas, moradias, instalações produtivas) vem da construção. É do investimento que vêm as viradas da economia. O setor, que emprega uns 8% dos trabalhadores, foi o mais arruinado na recessão (vide gráfico).

É impossível dar tratamento tópico, específico, aos problemas da construção sem cuidar também da síndrome depressiva multidimensional que desgraça a economia. Mas, no meio do caminho da cura, é preciso dar atenção à pedra das obras.

Sim, síndrome múltipla. A julgar por estudos dos economistas, a economia entrou em recessão extravagante e derivou para a depressãoporque:

1) em 2014, estava inflacionada. O IPCA devia estar entre os 6% da média 2010-2014 e abaixo dos 11% de 2015, quando acabaram os tabelamentos de preços. O déficit externo (uma medida de excesso de consumo) chegava ao nível de alerta de 4% do PIB. A indústria estagnara desde 2010. Por problemas de preço e qualidade, o país importava bens industriais, parte do crescimento "vazava" para o exterior. Era uma economia sem musculatura e agilidade para correr no ritmo em que vinha no terço final dos anos petistas;

2) é baixa a produtividade, problema crônico faz 40 anos e evidente na situação da indústria mesmo nos anos do pico do PIB: vivia estagnada;

3) quando PIB e arrecadação de impostos chegavam ao pico, em 2014, a despesa fixa do governo estava nas alturas. Com a crise e, pois, perda de receita, o buraco nas contas públicas, o déficit, passou a abrir de modo desastroso;

4) alta de juros e déficit fizeram a dívida pública explodir;

5) há choques políticos faz seis anos: Junho de 2013, eleição de 2014, estelionato eleitoral e campanha da deposição de Dilma Rousseff em 2015, impeachment em 2016, Joesley Day e fiasco das reformas de Michel Temer em 2017, caminhonaço e eleição de 2018. Tal tumulto deprime a confiança de consumidores e empresas;
6) a economia mundial ficou lerda;

7) a intervenção inepta na economia contribuiu para avariar setores (petróleo, álcool, elétrico) e desperdiçar capital em investimento ruim (refinarias e petroquímicas, obras de Copa e Olimpíada, excesso de fábricas de carros, obras de infraestrutura mal planejadas, paradas pelo caminho etc.). As reduções de impostos para empresas e o meio trilhão de reais de endividamento público para subsidiar investimento privado a juros baixinhos deram em nada;

8) a penúria do governo redundou no corte brutal do investimento em obras, ainda mais reduzido por causa da crise dos estados, quebrados pelo gasto excessivo em salários e Previdência;

9) a dívida federal ainda cresce sem limite, e o governo faz déficit para pagar despesas correntes. Assim, aumentar despesa de investimento a fim de estimular a economia é um problema nada trivial;

A sucessão rápida de governos (três em quatro anos), inépcia, instabilidade macroeconômica e velhos problemas regulatórios prejudicam as concessões de obras de infraestrutura para a iniciativa privada. Tal programa pode em parte compensar a depressão dos investimentos governamentais e das demais empresas privadas, na retranca por excesso de dívida, de capacidade ociosa e por medo crônico da crise sem fim.

Vinicius Torres Freire

Jornalista, foi secretário de Redação da Folha. É mestre em administração pública pela Universidade Harvard (EUA).

O Brasil irá à guerra - LUIZ FELIPE PONDÉ

FOLHA DE SP - 10/06

O PT tem tendência faccionalista; o bolsonarismo é seu reflexo no espelho

A primeira baixa no processo de radicalização que vivemos no Brasil é a elegância. As pessoas se tornam mesquinhas e mal-educadas quando convidadas ao debate, ansiosas pelo sangue dos outros entre os dentes.

Nada, nem ninguém, é poupado, nem velhas amizades, nem o rito milenar do respeito ao “santuário”, local em que se conversa educadamente sobre questões em disputa sem tentar vencer o outro. Aprofundemos um pouco esse mau presságio.

Polarização, faccionalismo, radicalização. Suspeito que o termo polarização já não apreenda a totalidade da experiência política no Brasil atual. Expressões como faccionalismo, no sentido dado pelos federalistas americanos (voltaremos a eles depois), capturam nossa experiência no país hoje de forma mais ampla e profunda. Por último, radicalização, à semelhança do uso no caso islâmico, parece-me descrever melhor o dano cognitivo, afetivo e político-social que a polarização causa no Brasil.

A polarização política poderá nos levar à exaustão. Infelizmente, mesmo os agentes públicos do pensamento se radicalizam à medida que o tempo passa, num movimento psicológico de infantilização intelectual e afetiva.

Trago para o diálogo os federalistas americanos Alexander Hamilton, James Madison (o mais essencial deles) e John Jay, autores de um volume não muito conhecido no Brasil cujo título é “O Federalista”, na tradução portuguesa da editora Calouste Gulbenkian, de Lisboa —em inglês o livro é conhecido como “The Federalist Papers”, e foi escrito nos últimos anos do século 18.

Com esse diálogo, pretendo oferecer recursos bibliográficos para aqueles que tiverem a boa vontade de combater a polarização. Esta está para a junk food assim como a tentativa de superá-la está para uma dieta ampla. A polarização é uma forma de regressão política.

Um dos riscos sempre temidos nos regimes populares (leia-se, as democracias) é o faccionalismo. Esse fenômeno, um dos focos de atenção dos federalistas, é quando grupos de diferentes tamanhos e densidade elegem como foco privilegiado sua própria agenda em detrimento da agenda do país como um todo.

Sua vocação é distinta daquela conhecida por nós como lobby, porque seu ethos é o da guerra, da intransigência e da violência. O faccionalismo destrói a capacidade de convívio, e faz com que conflitos outrora tratados no âmbito da institucionalidade transbordem para a violência autojustificada. A competição entre manifestações é um primeiro passo para o faccionalismo pleno.

A trajetória provável do faccionalismo é a desarticulação da democracia, e sua possível lenta destruição. O Brasil de hoje tem ao mesmo tempo um presidente faccionalista com um guru faccionalista (Olavo de Carvalho), e uma oposição faccionalista com um guru faccionalista (o Lula), que vê a si mesma como uma legião de boas almas cuja missão é salvar o país de si mesmo. O PT sempre teve uma vocação faccionalista.

O bolsonarismo é seu reflexo no espelho. Julgar-se do bem na política sempre carrega um traço de faccionalismo.

Quanto à radicalização, vejamos outro clássico da política: “Considerações sobre a Revolução na França”, livro do britânico Edmund Burke publicado pela É Realizações e datado dos últimos anos do século 18.

Nesta peça literária sobre filosofia política, Burke imagina a invasão dos aposentos da rainha Maria Antonieta pelos jacobinos enraivecidos: “logo descobrirão que a rainha é só uma mulher, e que uma mulher é só um animal”.Essa passagem é conhecida como a matriz do conceito de imaginação moral, que não trataremos aqui.

O próprio Burke sabia que essa raiva era fundamentada: a aristocracia francesa rompera seu acordo de cuidar da nação francesa, levando seu povo ao desespero.

Não me refiro aqui aos “miseráveis” a perder a elegância e perceber que uma mulher ou um homem são meros animais, passando a tratá-los como tais. Refiro-me à elite intelectual brasileira, que está a ponto de perder a elegância no debate entre nós mesmos. Se não há nada a fazer a não ser o ódio prático, o que nos resta? A guerra? Querer “ganhar” a briga intelectual não é indício de bolsonarismo e petismo mentais?

Se a responsabilidade é de nós todos, a maior parte cabe, sem dúvida, ao governo. Romper o faccionalismo é a tarefa diante dele e da oposição. A vaidade é uma inimiga mortal de quem quer cuidar de uma nação. A humildade é a única virtude que cabe aos líderes. E sua filha dileta, a prudência.

Luiz Felipe Pondé
Escritor e ensaísta, autor de “Dez Mandamentos” e “Marketing Existencial”. É doutor em filosofia pela USP.

A democracia bolsonarista - CARLOS ANDREAZZA

O GLOBO - 11/06

Há desprezo pela atividade política


Em recente entrevista a Danilo Gentili, Jair Bolsonaro formulou sobre o que seria democracia: “É a classe política estar perfeitamente afinada com os anseios da população.”

Não serão poucas as questões que se insinuam desde essa conceituação tão rasamente bela quanto profundamente autoritária. Tratarei de algumas aqui. Mas não sem antes reconhecer a transparência discricionária do presidente; porque tal definição condensa o ânimo que motorizou, por exemplo, as manifestações governistas de 26 de maio: a ideia de que a condição de líder carismático eleito de maneira contundente determine a subjugação dos demais poderes republicanos à agenda do governante popular.

Nada há de mais grave, no conteúdo vazado de conversas entre o então juiz Sergio Moro e o procurador Deltan Dallagnol, do que a passagem em que o hoje ministro da Justiça apresenta um propósito autocrático absolutamente inaceitável para um magistrado — intento, aliás, tocado adiante com sucesso, apesar do ceticismo: “Ainda desconfio muito de nossa capacidade institucional de limpar o Congresso”. O que dizer? Que Moro — juiz cuja intenção era limpar o Parlamento — está no lugar certo; e que não foi à toa que Bolsonaro levou a Lava -Jato, na figura do doutor, para dentro do governo. Há uma convicção em comum; um inimigo em comum.

Na origem dessa visão de mundo jacobinista influente, claro, está o desprezo pela atividade política e, logo, o entendimento da democracia representativa como entrave burocrático ao avanço do país: o Congresso compreendido como ameaça, a encarnação do establishment, a máquina defensora de interesses corporativos, não raro tratada como sindicato do crime, que operaria para inviabilizar os compromissos de campanha — espécie de imperativo divino inquestionável — assumidos por Bolsonaro.

Não se pode negligenciar o grau de crença religiosa que a trajetória e o discurso do presidente agregam a esse movimento de desqualificação da política. O homem foi esfaqueado em plena campanha, nos braços do povo, e não perde oportunidade de encaixar sua sobrevivência como a comprovação de que ora cumpriria uma missão de Deus. Uma engrenagem de fé personalista cujo fim virtuoso autorizaria a sociedade a prescindir dos freios e contrapesos que equilibram a República: porque o presidente, vítima e sobrevivente, foi eleito, quase à morte, defendendo tais e quais bandeiras, não lhes endossar incondicionalmente transformaria o Parlamento — reduzido a despachante do Executivo — em traidor da vontade popular.

Essa é a construção narrativa que impulsionou os atos governistas de 26 de maio, destinados a intimidar o Legislativo (já criminalizado pelo lavajatismo), e que ancora a pretensão bolsonarista de enfraquecer (ainda mais) o Congresso por meio de uma (improvável) mobilização popular constante — o que chamei de “plebiscito permanente”.

Voltemos, pois, à democracia segundo Bolsonaro: aquela cuja plenitude dependeria de a classe política estar perfeitamente afinada com os anseios da população. Parece bonito. Vende desapego. É sedutor. Mas: que “população” seria essa? Melhor: o que seria “população”? Essa pergunta precisa ser enfrentada à luz de um sistema de credos que vilipendia mediações e que tem centro num mito anabolizado por delegação celestial e com ambições de falar diretamente ao rebanho. Mais: o que seria uma afinação perfeita? Essa indagação precisa ser encarada sem que se perca de vista que o ímpeto de mobilização popular tem a atividade política como prática delinquente — algo só controlável sob pressão e medo.

Assim, sugiro, não se deve avançar sem medir a probabilidade de “afinação perfeita” ser o mesmo que submissão total à população. Tampouco se deve esquecer de que o agente político para quem a democracia derivaria de a classe política estar “afinada” aos desejos do povo é o mesmo que classificou os cidadãos que protestaram contra seu governo como “idiotas úteis”. Donde se infere que, para Bolsonaro, não haveria anseios da população nas pautas de oposição. Donde se infere que, para Bolsonaro, os anseios da população só seriam anseios se coincidentes com os de Bolsonaro.

A questão, portanto, continua sendo o que significaria, de acordo com a democracia bolsonarista, esse ente “população”.

A fala do presidente exprime uma visão totalitária; uma abordagem que, a rigor, mais do que confundir povo com governante popular, anula essa diferença, suprime mesmo o valor impessoal de representação, para fazer emergir o governante, o ungido, que é a população — a população que é o governante. Daí por que convido o leitor a refletir sobre se a definição “democracia é a classe política estar perfeitamente afinada com os anseios da população” não poderia ser substituída, para benefício de seu peso real, por “democracia é a classe política estar perfeitamente afinada com os anseios do governante”.

Que tal?

Como se perde um país - JOÃO PEREIRA COUTINHO

FOLHA DE SP - 11/06

Dividir para reinar sempre foi a receita favorita dos tiranos

Se a democracia morrer no século 21, não será como no século 20. Eis, em resumo, o que vários cientistas políticos nos dizem. Hoje, ninguém acredita em tanques nas ruas ou bombas nos palácios. Há formas mais sutis de chegar ao mesmo fim: a supressão da liberdade e o triunfo do autoritarismo. E que formas são essas?

Um livro recente, que falha em muita coisa, acerta no essencial. Foi escrito por Ece Temelkuran, uma conhecida escritora turca. O título resume a ambição da obra: "How to Lose a Country - The 7 Steps from Democracy to Dictatorship" (como perder um país - os 7 passos da democracia à ditadura, em português).

Escrevi que o livro falha em muita coisa porque Temelkuran procura convencer o leitor de que o exemplo turco será seguido por outros países europeus e, é claro, pelos Estados Unidos de Donald Trump. Um caminho de centralização do poder que terminará com presos políticos, censura da mídia, eleições fraudulentas e a oposição no exílio.

Lamento. Não compro essa histeria. Por mais indigesto que DonaldTrump seja, os Estados Unidos ainda não são a Turquia. A tradição democrática dos primeiros não pode ser confundida com a ausência de tradição da segunda.

Por outro lado, também não compro a forma displicente como Temelkuran inclui o brexit na vaga extremista que persiste na Europa.

Como se viu nas recentes eleições europeias, com a vitória do Brexit Party e a humilhação de conservadores e trabalhistas, os ingleses não apenas querem sair da União Europeia como não toleraram a traição que os dois partidos consumaram sobre o eleitorado, sabotando o que foi decidido nas urnas.

O livro de Temelkuran interessa-me por outro motivo: primeiro, porque é um retrato notável sobre a regressão democrática na Turquia; e, em segundo lugar, porque essa regressão pode ser imitada em democracias incipientes ou pouco consolidadas.

Segundo Temelkuran, essa viagem para as trevas começa com a criação de um movimento (como o partido AKP de Recep Tayyip Erdogan) que explora o ressentimento popular contra as elites (políticas, econômicas, midiáticas etc.) de forma a tribalizar a sociedade (nós versus eles).

Não que as massas —o "povo real", para usar essa expressão equívoca— não tenham razões de queixa. Mas o movimento vitimiza as massas de uma forma histérica e irracional, aumentando as suas dores.

Formado o movimento, há um assalto aos opositores que é também um assalto à linguagem (George Orwell sabia disso no seu "1984"). No melhor capítulo do livro, Temelkuran vai listando o tipo de argumentos que os partidários de Erdogan usam contra os inimigos.

Podem ser argumentos "ad hominem", quando é a pessoa a ser atacada, e não as suas ideias. Podem ser argumentos "ad ignorantiam", em que algo é refutado (ou defendido) porque ninguém o conseguiu provar (ou refutar).

E podem ainda ser argumentos "ad populum" —algo é verdadeiro porque muita gente acredita nisso, ponto final.

Como conclusão, a autora recorda um observação certíssima de Albert Camus: "Um homem com quem não se pode conversar é um homem a ser temido". Muitas democracias atuais converteram-se nesse inferno de Camus: espaços onde ninguém fala com ninguém.

Formado o movimento e a sua linguagem terrorista, há um assalto ao "sentido de decência" —o que era impensável e impronunciável por razões de civilidade é agora dito, repetido e normalizado.

Uma vez no poder, o movimento derruba os mecanismos judiciais e políticos que sustentam a democracia liberal (controle dos juízes; sabotagem de partidos rivais; eleições fraudulentas etc.).

Finalmente, e em plena consonância com experiências ditatoriais ocorridas no passado, o novo regime cria um "cidadão novo" (os "cidadãos velhos" não têm vez) e até um "país novo" (sobre os escombros do antigo). Assim, e nas palavras da autora, "a alma de um país é alterada irrevogavelmente quando ele repudia os seus cidadãos".

O livro de Ece Temelkuran é o testemunho pungente de quem acompanhou a deriva autoritária do seu país, exilando-se no processo.

Mas é também uma análise fina sobre o autoritarismo no mundo contemporâneo: um fenômeno que dispensa exércitos ou violência física, optando antes por uma guerra civil existencial em que uma parte da nação é renegada pela outra parte.

Dividir para reinar sempre foi a receita favorita dos tiranos.

João Pereira Coutinho
Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

Um recado claro para o governo - JOÃO DOMINGOS

O Estado de S.Paulo - 12/06

O Congresso negociou o que quis e levou o governo a reboque. Quanto aos vetos, mostrou a Bolsonaro que um governo sem base de apoio nada pode


A aprovação pela Câmara e pelo Senado, por unanimidade, de uma autorização especial para que o governo possa pagar R$ 248,9 bilhões em benefícios sociais e para o Plano Safra 2019/2020 com a emissão de títulos do Tesouro dá a dimensão do distanciamento que o Congresso vem tomando do presidente Jair Bolsonaro.

Foram 450 votos a favor da autorização do crédito suplementar na Câmara e 61 no Senado, uma unanimidade raras vezes vista, e da qual participaram partidos de centro e de oposição e os que apoiam o governo, como o PSL, do presidente Bolsonaro e o Novo.

Não é possível atribuir tal placar ao governo. Foi, antes de tudo, uma vitória do Congresso, que decidiu tomar para si as pautas positivas. E esta, que autorizou o Executivo a emitir títulos e se endividar em mais R$ 248,9 bilhões, vai servir para pagar benefícios para pessoas idosas carentes (BPC) e Bolsa Família, financiar o agronegócio e garantir alguns bilhões para o funcionamento de universidades, para o programa Minha Casa Minha Vida e para o projeto de transposição do Rio São Francisco.

Trata-se de um projeto da agenda positiva, assumido pelo Congresso, assim como está sendo assumida a reforma da Previdência. Se o governo não tem uma articulação capaz de fazer grandes acordos, o Congresso os faz, sem discriminar os partidos de oposição.

Como o presidente Jair Bolsonaro nunca se preocupou em montar uma base no Congresso, e trata projetos enviados ao Legislativo com certa distância, é de se louvar o empenho da líder do governo, Joice Hasselmann (PSL-SP), na busca desesperada por algum tipo de acordo. Joice foi a Bolsonaro e arrancou dele autorização para ceder aos partidos de oposição, que exigiam a garantia de alguma parte do dinheiro novo para setores não previstos no projeto original, como universidades e construção de casas populares. As bancadas do Nordeste garantiram verbas para manter o programa que cuida das obras no São Francisco.

Antes de o Congresso aprovar o crédito suplementar, foram derrubados quatro importantes vetos do Executivo. O primeiro, ainda do ex-presidente Michel Temer, permite novamente isenção de IPI e IOF para a aquisição de carros elétricos e híbridos. Representa renúncia de cerca de R$ 10 bilhões. Os outros três são de Bolsonaro. Um deles tentava evitar o perdão de até R$ 70 milhões para os partidos políticos, que teriam de devolver tal quantia recebida de servidores comissionados filiados às próprias legendas partidárias.

O recado ficou muito claro. O Congresso negociou o que quis, fez um acordo entre os partidos com representação nas duas Casas e levou o governo a reboque. Quanto aos vetos, agiu em bloco, derrubando-os e mostrando a Bolsonaro que um governo sem base de apoio nada pode.

Moro, Dallagnol e o vazamento de conversas - EDITORIAL GAZETA DO POVO - PR

Gazeta do Povo - PR - 12/06

Ao longo de toda a sua atuação na Operação Lava Jato, o procurador da República Deltan Dallagnol, coordenador da força-tarefa que investiga o megaescândalo de corrupção, e o ex-juiz federal Sergio Moro, hoje ministro da Justiça, sempre foram alvo de críticas daqueles que arquitetaram a pilhagem das estatais para fortalecer o projeto de poder petista. Acusações de parcialidade – uma delas, contra Moro, está para ser julgada pelo Supremo Tribunal Federal –, de messianismo e até mesmo de desrespeito às garantias mais básicas do Estado Democrático de Direito, tão frequentes quanto infundadas, cresceram em intensidade quando a Lava Jato chegou ao ex-presidente Lula, hoje corrupto condenado em três instâncias da Justiça brasileira.

Os críticos da Lava Jato ganharam um presente nos últimos dias: a divulgação de supostas conversas entre Moro e Dallagnol, cujo conteúdo teria sido obtido por um hacker e enviado ao site de esquerda The Intercept, que por sua vez vem divulgando o que alega ser a troca de mensagens. As reportagens publicadas até o momento não oferecem provas consistentes (como capturas de tela) de que efetivamente se trata do diálogo entre o então juiz e o procurador; por outro lado, até agora nenhum dos personagens envolvidos negou que o conteúdo das mensagens fosse verdadeiro.


Qualquer conclusão até o momento será totalmente precipitada

Com a divulgação das mensagens obtidas ilegalmente, a esquerda inicia uma nova tentativa de impor a fábula segundo a qual a Lava Jato não passaria de uma conspiração para derrubar o PT e, especialmente, colocar Lula na cadeia. A estratégia de deslocar todo o foco para as supostas conversas entre Moro e Dallagnol, no entanto, não é capaz de derrubar o enorme conjunto probatório que a força-tarefa construiu ao longo de anos de investigação laboriosa, e que embasou as sentenças de Moro e do Tribunal Regional Federal da 4.ª Região, em processos nos quais a defesa teve todas as oportunidades de se manifestar. Restaria, portanto, à defesa dos articuladores do petrolão tentar anular processos alegando violações de conduta da parte de investigadores e julgador. As mensagens tornariam isso possível?

Tendo em mente apenas o que foi divulgado até o momento, é preciso analisar o caso sob duas óticas. A primeira diz respeito à obtenção das mensagens, e aqui não há a menor dúvida de que houve crime da parte de quem invadiu os celulares das autoridades, do eventual mandante da invasão e de quem as distribuiu para o site The Intercept. O mesmo não se pode dizer dos jornalistas que publicaram as reportagens; eles estão exercendo seu direito à liberdade de imprensa – se o fazem de forma ética, é outra discussão – e têm inclusive garantido o sigilo da fonte, tanto quanto um veículo que divulgue o conteúdo de outros vazamentos, inclusive ligados aos processos da Lava Jato. A invasão de telefones de autoridades é um fato gravíssimo, pois demonstra um grau de ousadia e domínio tecnológico que tem um enorme potencial de instabilidade, e por isso merece apuração criteriosa da Polícia Federal. E a ilegalidade envolvida na forma como as conversas foram obtidas é tanta que chega a surpreender o fato de o Conselho Nacional do Ministério Público, em decisão absurda, já ter aberto processo disciplinar contra Dallagnol e outros procuradores da Lava Jato, apoiando-se em evidências provenientes de violações da lei.

Quanto ao conteúdo das mensagens, o que foi divulgado até o momento – pois Glenn Greenwald, fundador do Intercept e um dos jornalistas que assinam as reportagens, diz haver mais conversas ainda não publicadas – não nos permite endossar nem a narrativa de parcialidade, nem a de trabalho conjunto entre acusador e julgador, nem aquela que vê violações dos códigos que regem o comportamento da magistratura e dos membros do Ministério Público. A realidade da Justiça brasileira, e que qualquer advogado conhece, é uma em que juízes, acusação e defesa não dialogam apenas nos autos dos processos, algo que vem sendo ressaltado na repercussão da divulgação das conversas.

Os supostos diálogos mostram, sim, o que seria uma proximidade entre juiz e procurador, talvez até maior que o observado costumeiramente, mas qualquer conclusão até o momento será totalmente precipitada. Isso porque, como lembramos, mesmo dias depois do início da publicação das reportagens, ainda não surgiu nem mesmo a comprovação de que as mensagens trocadas foram efetivamente enviadas por Moro e Dallagnol. E, ainda que surja essa prova, será preciso ter acesso à íntegra das conversas – ou seja, sem omissões de trechos que poderiam até mesmo demonstrar que os interlocutores procederam de forma correta. Entre os supostos diálogos já divulgados, há aqueles que revelam certa imprudência de juiz e procurador, sendo eles os reais autores? Talvez. Há violação do devido processo legal? Só a análise do conteúdo integral permitiria chegar a essa conclusão, o que ainda não é possível fazer.

Moro mergulhou de cabeça nas armadilhas da política - MARCO AURÉLIO NOGUEIRA

O Estado de S.Paulo - 12/06


O juiz Sérgio Moro fez um cálculo equivocado quando aceitou ser ministro de Jair Bolsonaro. Em vez de ganhar força para impulsionar a luta contra a corrupção e abrilhantar sua biografia, assinou um pacto com o diabo: mergulhou de cabeça nas armadilhas da política, sem ter o devido preparo para isso. Logo ficou evidente sua dificuldade para lidar com políticos, partidos e pressões.

Foi um erro provocado pelo desejo de inscrever o nome na história. O juiz deve ter achado que, a partir de Brasília e com o apoio do presidente, garantiria um fecho grandioso à carreira (o Supremo Tribunal Federal) e completaria o trabalho da Operação Lava Jato.

Só que no meio do caminho havia algumas pedras. O governo Bolsonaro não aprumou e a classe política, “empoderada” com os vazios deixados pelo Executivo, passou a monitorar os movimentos ministeriais. Contra Moro, em particular, ergueu-se uma barreira formada pelos adversários da Lava Jato, dos interessados em “Lula livre” aos preocupados em livrar a própria pele. Um desejo de “vingança” passou a conspirar contra o ministro da Justiça.

As conversas hackeadas entre Moro e os procuradores da Lava Jato dramatizam a situação e fornecem munição para que os ataques recrudesçam. O ministro da Justiça e Segurança Pública terá agora de ficar dando explicações constrangedoras.

As conversas não parecem ter força para fazer a roda da Lava Jato retroceder ou para desmanchar a montanha de provas, depoimentos e julgamentos que atestam o tamanho da corrupção no País. Mas, soltam fumaça e levantam uma nuvem de suspeita difícil de ser dissipada.

No fundo, o erro originário de Moro explica a turbulência que atinge uma operação que se imaginava blindada contra os efeitos da política. A Lava Jato nunca primou pelo respeito cego às práticas jurídicas consagradas. O ativismo 

que adotou esteve sempre sub judice. Para justiçar os políticos, seus operadores foram fazendo política contra a política, confiando no aplauso das multidões e, depois, no respaldo do presidente da República, que jamais se consumou.

Acontece que Bolsonaro também é político e não se caracteriza por ser criterioso na relação com amigos e inimigos.

A Moro e Dallagnol ainda restará a opção pelo voto - JOSÉ NÊUMANNE

O Estado de S.Paulo - 12/06


Ministro da Justiça e procuradores foram vítimas da própria ilusão de impunidade


Esta semana começou com a divulgação de pretensos diálogos por Telegram entre o ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, e os procuradores da força-tarefa da Lava Jato, coordenados por Deltan Dallagnol, revelando um pretenso acordo entre eles na condução de um processo da operação. Se forem verdadeiras – e nada até agora pode ser dito em contrário, com a agravante de os acusados em suas manifestações não as terem negado –, essas conversas, só pelo que foi divulgado até agora, são nitroglicerina pura na política, na Justiça, no governo e no Brasil.

As alegações apresentadas são desprezíveis. O jornal online The Intercept Brasil, que publicou as mensagens, é veiculado no País, desde agosto de 2016, pela empresa americana First Look Media, criada e financiada por Pierre Omidyar, fundador da eBay. E editada pelo advogado também americano, especialista em Direito Constitucional e ex-jornalista do diário britânico The Guardian Glenn Greenwald; pela cineasta, documentarista e escritora Laura Poitras; e pelo jornalista investigativo (natural dos EUA) Jeremy Scahill, especialista em assuntos de segurança nacional e autor do livro Blackwater: The Rise of the World’s Most Powerful Mercenary Army. Greenwald é casado com o brasileiro David Miranda, eleito vereador do Rio de Janeiro pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) e, atualmente, deputado federal na vaga de Jean Wyllys, que renunciou à cadeira na Câmara para sair do País, onde se dizia ameaçado. Adversária do impeachment da petista Dilma Rousseff, a publicação não é certamente imparcial. E daí? A Constituição federal garante o direito de qualquer veículo de comunicação exercer livre manifestação de opinião, desde que não publique mentiras.

A parcialidade questionada pela notícia, que explodiu como uma bomba de efeito devastador domingo (9/6), à noite, é a do ex-juiz da 13.ª Vara Criminal de Curitiba, em teoria pilhado em combinações estratégicas com procuradores federais em ação sob seu julgamento.

Conforme o que foi publicado até agora e na expectativa de que novos fatos venham a ser revelados pelo responsável pela divulgação, esse herói nacional, por mercê de seu desempenho na operação em tela, teria interferido no trabalho do MP. A iniciativa feriria o princípio básico da isenção do julgador, proibido de manifestar qualquer parti pris na tarefa de decidir quem tem razão: o Ministério Público, que, em nome do Estado, acusa o suspeito, e a defesa do acusado. Caso sejam mesmo autênticas as mensagens trocadas entre Moro e Dallagnol, levando em conta o fato de os outros diálogos até agora revelados não representarem abusos de conduta, mas apenas opiniões pessoais, a revelação é grave.

A eventual inclinação do juiz a aceitar os argumentos dos procuradores, em detrimento das negativas apresentadas insistentemente pelos defensores de Lula, os levará a pedir a anulação da sentença em primeira instância do processo sobre recebimento de propina e ocultação de patrimônio do triplex do Guarujá. Não implica, contudo, a automática inocência do réu, que dependerá de serem reformadas decisões unânimes de duas instâncias superiores, a segunda e a terceira, sobre o caso. De igual forma, a presunção tem sido contestada em outras varas. Há nova condenação do mesmo réu em idêntico juízo, da lavra da substituta eventual de Moro, Gabriela Hardt, e que o substituto permanente, Luiz Antônio Bonat, já encaminhou para ser julgada na Oitava Turma do Tribunal Federal Regional da 4.ª Região, em Porto Alegre. Assim, Lula responde a sete processos. No mais recente, o juiz Vallisney de Oliveira, da 10.ª Vara da Justiça Federal em Brasília, o tornou réu com Palocci e Paulo Bernardo, sendo o trio acusado de ter acertado receber US$ 40 milhões (R$ 64 milhões, à época) em propinas pagas pela empreiteira então presidida por mais um réu, Marcelo Odebrecht.

Ou seja, é bem longo e árduo o caminho perseguido pela defesa de Lula para soltá-lo. A ser provado em processo judicial, que costuma ser lento e complicado, o que foi revelado até agora mais prejudica Moro e os procuradores da Lava Jato, em especial Dallagnol, do que beneficia o presidiário mais famoso do Brasil, pilhado em vários passeios pelo Código Penal. Mesmo que The Intercept Brasil não tenha esgotado sua munição contra o ex-juiz da Lava Jato, será difícil a escalada do Himalaia de acusações por Lula, a não ser que a divulgação tenha sido autorizada por um juiz. Aí, a permanência de Moro no Ministério da Justiça ficaria insustentável. E isso dependerá menos da reação da opinião pública, que o idolatra e não confia nas instâncias superiores do Judiciário, às quais caberá julgá-lo, mas das circunstâncias políticas, que poderão levar o presidente Jair Bolsonaro a abrir mão do justiceiro, se passar a ser considerado suspeito de parcialidade.

Assim, até novembro de 2020, daqui a um ano e meio, quando o decano do Supremo Tribunal Federal (STF), Celso de Mello, se aposentar, é de duvidar que mesmo uma mão forte do chefe do governo bastaria para alçá-lo ao pináculo da Justiça, mantendo a promessa que até agora, tudo indica, mantém. Até então, o herói popular das manifestações de rua de 2016 para cá terá muitas noites para lamentar a mistura de infantilidade, soberba e senso de impunidade que conduziu seus surtos de adolescência leviana e bastante tardia. Seu companheiro em travessuras virtuais, o coordenador da força-tarefa da Lava Jato, Deltan Dallagnol, também lastimará o instante em que acreditou na lorota de que o aplicativo russo é um meio de comunicação pessoal à prova de hackers. Estes dificilmente serão identificados. Pois, talvez seja de bom alvitre avisar que a experiência pregressa não autoriza expectativas favoráveis no caso.

A seus carrascos, que ora comemoram, é útil lembrar que restará a Moro e Dallagnol a saída pelo voto, pois parecem manter a devoção popular.

Fé e democracia - HELIO SCHWARTSMAN

FOLHA DE SP - 12/06

Cada religião deve ser livre para determinar seus requisitos para o sacerdócio

Como ateu de terceira geração, não tenho simpatia por nenhuma religião. Todas elas me parecem uma tentativa meio infantil de convencer-se de que a vida tem um sentido transcendente. Não tem.

Não espero, porém, que todos concordem comigo. Só mencionei meu histórico religioso para mostrar que minhas convicções anticlericais são democráticas, o que me permite dizer que percebo na “intelligentsia” certo preconceito antievangélico, em especial contra a Igreja Universal.

É provável que as lideranças de alguns desses grupos sejam mais picaretas que a média das denominações neopentecostais, que seja mais picareta que a das religiões tradicionais. Esse, contudo, é um juízo sociológico, que não deveria autorizar diferenças no tratamento que o poder público dispensa a cada fé.

Nesse contexto, parece-me complicado equiparar o sacerdócio a um emprego regular e aplicar-lhe as regras do direito do trabalho, como oJudiciário fez com a Universal, tendo-a condenado por induzir pastores a fazerem vasectomia.

Cada religião deve poder determinar livremente seus requisitos para o sacerdócio. Se não for assim, teríamos de examinar se o veto da Igreja Católica ao sacerdócio feminino não viola regras contra a discriminação de gênero, se as mesquitas estão observando corretamente a cota legal de deficientes entre clérigos e até mesmo se as sinagogas não estão descumprindo a Lei Antirracismo, ao bloquear a contratação de rabinos não judeus.

Se há uma esfera em que lógica e razoabilidade não se aplicam, é a da religião. Numa tradição, quem receber uma transfusão de sangue estará irremediavelmente condenado a arder no inferno. Em outra, é terminantemente proibido misturar carne com leite. Numa terceira, amealhar toneladas de dinheiro é marca insofismável da graça divina. Não cabe ao Estado democrático se meter nessas questões, que são indecidíveis, mas apenas assegurar a plena liberdade religiosa.

Moro, pede pra sair - ELIO GASPARI

FOLHA DE SP/O GLOBO - 12/06

Permanência do doutor no governo ofende a moral, o bom senso e a lei da gravidade

As conversas impróprias de Sergio Moro com o procurador Deltan Dallagnol enodoaram a Lava Jato e fragilizaram a condenação imposta a Lula pelo tríplex de Guarujá (SP). Se isso fosse pouco, a postura arrogante do ministro da Justiça nas horas seguintes às revelações do site The Intercept Brasil, obriga muitos daqueles que gostariam de defendê-lo a ficar no papel de bobos: “Basta ler o que se tem lá e verificar que o fato grave é a invasão criminosa do celular dos procuradores”. Antes fosse. O fato grave é ver um juiz, numa rede de papos, cobrando do Ministério Público a realização de “operações”, oferecendo uma testemunha a um procurador, propondo e consultando-o a respeito de estratégias.

As mensagens de Moro e de Deltan deram um tom bananeiro à credibilidade da Operação Lava Jato e mudaram o eixo do debate nacional em torno de seus propósitos. O ministro e o procurador reagiram como imperadores ofendidos, tocando o realejo da invasão de privacidade. Parolagem. Dispunham de uma rede oficial e segura para trocar mensagens e decidiram tratar de assuntos oficiais numa rede chumbrega e privada. Noves fora essa batatada, precisam explicar o conteúdo de suas falas. Sem explicações, a presença dos dois nos seus cargos ofende a moral e o bom senso. No caso de Moro, ofende também a lei da gravidade. Ele entrou no governo amparando Jair Bolsonaro e agora depende de seu amparo. Se o capitão soltar, ele cai.

Em nome de um objetivo maior, a Lava Jato e Moro cometeram inúmeros pecados factuais e algumas exorbitâncias, tais como o uso das prisões preventivas como forma de pressão para levar os acusados às delações premiadas. Como não houve réu-delator que fosse inocente, o exorbitante tornou-se conveniente. Ao longo dos anos, Moro e os procuradores cultivaram e, em alguns casos, manipularam a opinião pública. Agora precisam respeitá-la.

Uma das revelações mais tenebrosas das mensagens é aquela em que, dias depois de divulgar o conteúdo do grampo de uma conversa da presidente Dilma Rousseff com Lula, Moro diz que “não me arrependo do levantamento do sigilo, era a melhor decisão, mas a reação está ruim”.

Não houve “levantamento”, mas quebra, pois a conversa foi interceptada depois que expirara o prazo para as escutas. Dias depois de cometer a exorbitância, Moro explicou-se ao ministro Teori Zavascki com uma argumentação desconexa, até sonsa.

A conversa de Dilma com Lula deu-se no dia 16 de março de 2016, quando eles concluíam a armação da ida do ex-presidente para a Casa Civil.

A reportagem do The Intercept Brasil informa que às 12h44 Moro e Deltan discutiram a divulgação “mesmo com a nomeação”. Sabia-se que Dilma pretendia nomear Lula, mas o telefonema só ocorreu às 13h22. Às 15h27 Deltan disse que sua posição era de “abrir” o assunto e às 18h40 ele estava no ar, detonando a manobra do comissariado petista.

Para quem tinha esse objetivo, foi um sucesso, mas não está combinado que juízes e procuradores se metam em coisas desse tipo. O viés militante de Moro e Deltan na Lava Jato afasta-os do devido processo legal, aproximando-os da República do Galeão, instalada em 1954 em cima de um inquérito policial militar que desaguou no suicídio de Getúlio Vargas.

Caso Moro coloca país em profundo desafio de moralidade política - RUBENS GLEZER

FOLHA DE SP - 12/06

Devemos proteger a democracia seguindo regras ou rompê-las quando essas atrapalham os objetivos?

​​A publicação de trechos de conversas entre membros da Promotoria da Lava Jato e o ex-juiz do caso, atual ministro Sergio Moro, tem o potencial de reanimar e fomentar a polarização e instabilidade política no país.

Para além dos escândalos e disputas imediatas, porém, há algo de mais profundo nesse episódio que diz respeito ao caminho que queremos como nação. Em momentos como esse se torna ainda mais relevante tentar separar o que é certo daquilo que é especulativo ou controverso.

Todas as conversas suscitam debates sobre o papel de promotores e juízes em investigações penais e a relevância do combate à corrupção.

Mas há um aspecto que possui mais objetividade do que os demais: a possibilidade de Moro ter orientado o procurador Deltan Dallagnol em como agir em determinadas situações dos processos que julgou. Esse episódio é central porque é claramente previsto em lei.

O Código de Processo Penal determina que o juiz é considerado “suspeito” (ou seja, sem a devida imparcialidade) se tiver aconselhado a acusação ou a defesa (artigo 254, IV). Em tais casos, o código determina que devem ser anuladas as decisões tomadas por juízes “suspeitos” (artigo 564, I). Essa é a regra, mas se Moro realmente aconselhou a Promotoria é algo sujeito a debate.

Há trechos das conversas que sinalizam para a intromissão de Moro na tomada de decisão da investigação, com a sugestão de como proceder, cobrando ação, realizando críticas à atuação de procuradores e, especialmente, indicando testemunhas que a Promotoria deveria ouvir (indicando provas).

Se esses relatos forem verdadeiros, será muito difícil argumentar que Moro não feriu as regras do processo penal, ferindo seus deveres de imparcialidade.

Porém isso não significa que os juízes que tiverem de decidir sobre a imparcialidade de Moro não possam se pautar em outras razões. Algumas delas podem ser jurídicas e outras não.

O embate jurídico diz respeito a como devem ser tratadas essas informações obtidas possivelmente por meios ilegais. Ainda não está claro se elas foram obtidas por meio da invasão ilegal no celular de um dos membros da Lava Jato ou se foi obtida em algum momento de descuido com o celular (ou algo do gênero).

Seja qual for a resposta para essa dúvida, ainda permanece a questão sobre o quanto tais informações podem ser utilizadas em benefício dos réus e condenados da Lava Jato.

O principal debate não deverá ser jurídico. Boa parte da defesa de Moronesse episódio pode se reunir sob a ideia de que os fins justificam os meios.

Alguma variação do argumento de que o caso de Lula e de tantos outros era (ou é) tão excepcional que não há demérito na quebra da lei para atender às demandas de punição aos poderosos.

Algo na linha de que algumas injustiças devem ser toleradas em nome de uma batalha maior a respeito da Justiça. Essa é uma linha de argumentação que cria um desafio para todos nós.

O que esse episódio faz é colocar os brasileiros (novamente) perante uma profunda questão de moralidade política: devemos proteger a democracia seguindo as regras e os procedimentos criados democraticamente ou devemos romper com essas regras quando elas atrapalham os objetivos que a maioria deseja?

Creio que há uma outra forma de colocar a mesma questão: acreditamos em fortalecer as instituições ou nos dispomos a colocar o futuro nas mãos daqueles que aparecem como heróis de nossa época? Quando nos deparamos com alguém que joga “sujo”, fazemos o mesmo ou insistimos em manter o jogo “limpo”?

Essas são questões que o caso traz com toda força. Porém, no cenário de polarização atual, o mais provável é que cada um mantenha suas posições como antes.

Parece que há pouco espaço para quem reconheça os méritos da Lava Jato e também faça as devidas críticas, como para quem reconheça os méritos de Lula e também faça as devidas críticas. Aparentemente, há mais espaço para narrativas simplificadoras, de deuses e demônios.

Na vigência de tais narrativas simplificadoras, quem discorda só pode ser visto como tolo ou mau-caráter. Em simplificações como essas, quem discorda só pode ser um inimigo. Em simplificações como essas, não há meio-termo nem campo comum entre os cidadãos que discordam. Em tais condições, é difícil falar em democracia.

A dúvida que o caso propõe tem as mesmas exigências que a Esfinge de Tebas: “Decifra-me ou te devoro”.

Precisamos solucioná-lo para sobreviver enquanto sociedade. Porém só seremos capazes de respondê-lo se reaprendermos a ser novamente uma sociedade. Caso contrário, seremos devorados.

Rubens Glezer
Professor e coordenador do Supremo em Pauta da FGV Direito SP

Tentativa de apagar as culpas de Lula é ridícula - JOSIAS DE SOUZA

UOL/ 12/06


A defesa de Lula já tentou de tudo para demonstrar a tese segundo a qual o presidiário petista não passa de vítima de uma orquestração urdida para transformar um ex-presidente honestíssimo num político corrupto. O problema é que tudo ainda não quis nada com Lula e seus defensores. De repente, vieram à luz as conversas de Sergio Moro com Deltan Dallagnol, extraídas criminosamente dos celulares de autoridades.

Os advogados ficaram eufóricos. Foram encontrar o preso na cadeia. "A verdade fica doente, mas não morre", disse Lula aos doutores ao comentar as mensagens que revelaram a atmosfera de colaboração que unia seu algoz Sergio Moro e o procurador Deltan Dallagnol. Lula declarou-se surpreso com o grau de "promiscuidade" que marcava o relacionamento do seu julgador com o chefe dos acusadores da Lava Jato.

Moro e Dallagnol ultrapassaram, de fato, a fronteira que separa o relacionamento funcional do comportamento abusivo. Com isso, forneceram o óleo de peroba que leva Lula a restaurar sua face de madeira. O problema é que, por ora, não há nas manifestações do ex-juiz e do procurador material capaz de transformar culpados em inocentes. Para demonstrar a tese da orquestração, seria necessário invadir os celulares de muita gente…

…Os delegados federais, auditores da Receita, procuradores de Curitiba e de Brasília, juízes de primeiro grau, desembargadores do TRF-4 e ministros do STJ responsáveis pela condenação de Lula e pelos nove processos que ele protagoniza, seis dos quais já convertidos em ações penais. Com um histórico assim, a menos que a defesa comprove que o preso de Curitiba é um sósia que tenta enlamear a biografia do Lula original, qualquer tentativa de anular as culpas de um corrupto de terceira instância será apenas ridícula.

Moro sem capa - VERA MAGALHÃES

O Estado de S. Paulo - 12/06


Em política, os agentes costumam sentir cheiro de sangue na água. E o ex-todo-poderoso Moro sangrou pela primeira vez.


Juízes usam capa em tribunais de júri e cortes superiores. Heróis usam capa nos quadrinhos. Sérgio Moro não é mais juiz, ainda não chegou ao Supremo Tribunal Federal, seu sonho declarado, e perdeu nos últimos dias, ao menos por ora, a capa de herói com que foi retratado em atos no dia 26. Moro está momentaneamente sem capa, pela primeira vez desde que se notabilizou pela Lava Jato.

Isso significa que o ministro da Justiça perdeu o respaldo das ruas e das redes? Não. Os atos em apoio ao governo foram mais um aval à agenda de Moro que à de Jair Bolsonaro. Mas as hashtags de apoio ao ex-juiz depois da revelação de trechos de conversas obtidas de forma, ao que tudo indica, ilegal e divulgadas pelo site The Intercept Brasil rivalizaram com as de críticas à Lava Jato, e medições feitas nas interações no Twitter mostram o campo de centro dividido entre o apoio à operação e a decepção com a revelação de interações não institucionais entre acusação e juiz.

Em política, o ambiente em que Moro escolheu transitar quando deixou a magistratura, os agentes costumam sentir cheiro de sangue na água. E o ex-todo-poderoso sangrou pela primeira vez de forma consistente depois de quatro anos praticamente sem contestações. Deputados, senadores, ministros do Supremo, derrotados nas últimas eleições, advogados. A fila dos que veem no episódio a chance de ir à forra contra Moro e os procuradores é imensa. E leva a consequências imediatas.

O projeto anticrime, que estava em banho-maria, subiu no telhado. A indicação ao STF, antes dada como certa pelo próprio presidente, hoje é vista com ceticismo entre colegas de ministério e integrantes da Corte. O acordo para que o ministro deponha diante do Senado atende em parte a essa sede de sangue indisfarçada.

“Ao mal tudo se permite; da virtude tudo se exige”, lamentou para mim um ministro de Bolsonaro, solidário ao colega. Pode parecer injusto, mas o juiz Moro vestiu como uma capa de herói esse figurino da virtude intransigente. Justamente por isso, e por ter visto de perto casos como Banestado e Castelo de Areia, sabia melhor que ninguém que vícios de forma podem, sim, macular uma virtuosa operação de combate à corrupção – cujo acervo de provas de escândalos revelados, diga-se, segue intacto.

Dos heróis e das leis - EDITORIAL O ESTADÃO

O Estado de S. Paulo - 12/06


O País terá dado um dos mais significativos saltos civilizatórios de sua história quando – e se – deixarmos de ser uma sociedade carente de heróis e nos tornarmos devotos das leis.



Quando – e se – deixarmos de ser uma sociedade carente de heróis e nos tornarmos uma sociedade devotada às leis, à Constituição e aos primados do Estado Democrático de Direito, o País terá dado um dos mais significativos saltos civilizatórios de sua história.

Parece, no entanto, que aqui há um pendor atávico ao sebastianismo, como se a Nação estivesse permanentemente à espera da volta de um personagem messiânico para dar cabo das agruras de turno. Como é sabido, o retorno do rei português, desaparecido durante a batalha de Alcácer Quibir, em 1578, foi ansiosamente aguardado pelos súditos como única forma de salvação diante da crise que se instalou após a sua partida.

As reações à divulgação do conteúdo de conversas atribuídas a integrantes da força-tarefa da Operação Lava Jato e a Sergio Moro, havidas quando o atual ministro da Justiça era o juiz responsável pelos processos relativos à operação na primeira instância, revelam que ainda transcorrerá muito tempo até que aquele virtuoso salto seja dado. A dicotomia “heróis x vilões” vicia o debate público.

A lei parece estar sempre em segundo plano no debate entre aqueles que veem Sergio Moro e alguns procuradores da força-tarefa da Lava Jato – em especial Deltan Dallagnol – como heróis nacionais e os que neles apenas enxergam parcialidade, ardis e dissimulação. Evidente que nada de aproveitável pode sair de discussões em que os interlocutores nem sequer admitem a hipótese de rever suas convicções ante a irrefutabilidade dos fatos e tampouco ao comando da lei.

Nas sociedades civilizadas, o mínimo denominador comum em debates desse tipo são precisamente os fatos, as leis, a Constituição. Não se quer afirmar com isso que, no caso concreto envolvendo a troca de mensagens entre o ex-juiz e ministro da Justiça e um procurador da República, tenha havido ilegalidades. Por ora, pode-se dizer que as conversas foram, no mínimo, inapropriadas para as posições públicas que os interlocutores ocupavam.

Em geral, tal dissociação objetiva – a saber, entre pessoas e suas funções públicas, cuja atuação há de ser delimitada pela lei – não é feita porque viceja nesta porção de mundo um tipo de culto à personalidade. E, em alguns casos, personalidades pairam acima das leis ao sabor da paixão de seus seguidores. Isto pode funcionar muito bem no campo das artes e dos espetáculos, mas é desastroso para a vida política e institucional de um país.

Num país que se pretende sério, não há lugar para “super-heróis”, “salvadores da pátria”, “mitos”, “pais” e “mães da Pátria”. A vida política e institucional republicana, como aquela que todos os que não têm o pensamento aprisionado desejam para o Brasil, não há de ser construída por heróis, por salvadores da pátria. Ela é feita de homens e mulheres imbuídos de elevado espírito público que veem em seu serviço uma parcela de contribuição para o crescimento do País. O fato de haver parcela expressiva da sociedade que põe presidentes da República acima das leis ou classifique como “heróis” servidores que se sobressaem no cumprimento de suas obrigações institucionais diz sobre o nosso grau de amadurecimento político.

São claros os avanços trazidos pela Operação Lava Jato ao combate à corrupção e, principalmente, ao resgate da confiança dos brasileiros no primado democrático da igualdade de todos perante a lei. Os benfazejos resultados do trabalho de membros da força-tarefa, no entanto, não os colocam acima das mesmas leis que devem fazer cumprir.

Compreende-se que, diante de uma longa história de leniência no combate à corrupção e da impunidade crônica que marcou a resposta do Estado aos crimes cometidos por poderosos, políticos ou econômicos, a coragem dos que ousaram romper o status quo foi premiada com a admiração e o respeito da sociedade. Mas isto nem de longe autoriza quem quer que seja a se desviar das leis e da Constituição para dar andamento a seus desígnios, por mais virtuosos que sejam.

A primazia das regras que pautam um Estado Democrático de Direito não é um luxo, é um imperativo para que o País construa no presente o futuro que deseja viver.


Interpretações - MERVAL PEREIRA

O GLOBO - 12/06

Como a palavra escrita não tem entonação, é possível ter-se versões diferentes sobre o mesmo tema



A decisão do Conselho Nacional de Justiça de não levar adiante um pedido de investigação sobre o hoje ministro Sérgio Moro, sob a alegação de que ele não é mais juiz e, portanto, não está sob a jurisdição do CNJ, retira qualquer possibilidade de punição no campo jurídico a respeito das conversas reveladas pelo site Intercept.

A questão agora fica por conta do Supremo Tribunal Federal (STF), que vai julgar no dia 25 um pedido de suspeição do juiz Moro feito pela defesa do ex-presidente. Esse pedido já foi rejeitado em diversas instâncias da Justiça, e a única novidade são as conversas reveladas agora.

A Segunda Turma, como fez ontem com o pedido de anulação dos julgamentos do TRF-4, deve mandar para o plenário a decisão dessa nova ação da defesa de Lula, pela gravidade de suas conseqüências.

As conversas, mesmo não fazendo parte da ação que será julgada, certamente afetarão a decisão dos juízes. É difícil imaginar que o presidente da Corte, Dias Toffoli, e o ministro Alexandre de Moraes, aceitem julgar com base em provas recolhidas ilegalmente, já que eles são os líderes de uma ação singular do Supremo contra as fake news, e a atuação de hackers nas redes sociais.

O que mais impactou quem leu a troca de mensagens entre o então juiz Sérgio Moro e o chefe dos procuradores da Lava-Jato, Deltan Dallagnol é a informalidade com que tratam de assuntos relacionados ao processo do ex-presidente Lula.

Jornalisticamente é compreensível que o Intercept tenha escolhido trechos sobre o ex-presidente Lula para abrir o que deve ser uma série. Não há registros, porém, de conversas sobre investigados de outros partidos políticos que, como ressaltou o procurador Dallagnol em defesa da Lava-Jato, já acusou só em Curitiba políticos e pessoas vinculadas ao PP, ao PT, ao PMDB, ao PSDB, ao PTB, e só a colaboração da Odebrecht nomeou 415 políticos de 26 diferentes partidos.

O trecho do Intercept em que Moro claramente sugere que os procuradores ouçam uma testemunha sobre uma suposta transferência ilegal de imóveis de filho do ex-presidente Lula, parece ser o mais próximo de um aconselhamento, o que é proibido pelo Código de Processo Penal e, teoricamente, pode ser motivo de anulação do julgamento.

“Então. Seguinte. Fonte me informou que a pessoa do contato estaria incomodado por ter sido a ela solicitada a lavratura de minutas de escrituras para transferências de propriedade de um dos filhos do ex Presidente. Aparentemente a pessoa estaria disposta a prestar a informação. Estou então repassando. A fonte é seria”, escreveu Moro.

“Obrigado!! Faremos contato”, respondeu Dallagnol pouco depois. “E seriam dezenas de imóveis”, acrescentou o juiz. O que está sendo considerada uma sugestão indevida, na verdade, segundo fontes ligadas aos procuradores de Curitiba, foi uma maneira informal de oficiar ao Ministério Público a ocorrência de um possível crime que precisava ser apurado.

Qualquer pessoa, sobretudo um servidor público, que se depara com algo criminoso, tem o dever legal de encaminhar a denúncia ao Ministério Público. Não se sabe se Moro formalizou o ofício depois, ou achou suficiente essa comunicação através de mensagem de celular.

Mais adiante, segundo a transcrição do Intercept, o procurador disse que ligou para a fonte, mas ela não quis falar. “Estou pensando em fazer uma intimação oficial até, com base em notícia apócrifa”, cogitou Dallagnol. Ao que tudo indica, diz o Intercept, o procurador estava considerando criar uma denúncia anônima para justificar o depoimento da fonte.

O juiz Sergio Moro endossou a gambiarra, na interpretação do Intercept: “Melhor formalizar então”, escreveu Moro. Assim como essa interpretação leva a um desvio de conduta, outras podem revelar uma relação informal, mas dentro da lei.

Moro, alegam as mesmas fontes, quando escreveu “melhor formalizar, então”, estava advertindo Dallagnol de que teria que oficializar esse pedido, incluindo seu ofício aos procuradores. Como a palavra escrita não tem entonação, é possível ter-se versões diferentes sobre o mesmo tema.

Moro já disse que não tem condições de confirmar a veracidade das conversas, mas não negou que elas tenham acontecido. A certeza de que as conversas são editadas pelo site Intercept, revelada por ele, se deve, entre outras coisas, ao fato de estranhar que não haja nomes citados nessa suposta conversa. Ainda mais quando Dallagnol diz que vai mandar procurar a tal testemunha.

A defesa de pontos-chave da reforma - EDITORIAL O GLOBO

O GLOBO - 12/06

Relatório será entregue à Comissão Especial, e as negociações começam a definir alcance das mudanças

Na semana da entrega do relatório sobre a proposta de reforma da Previdência, por Samuel Moreira (PSDB-SP), à Comissão Especial, prevista para amanhã, aceleram-se as negociações em Brasília. Devem-se relembrar o que está em jogo e os limites até onde deve ir o Congresso, para que esta chance de se desarmar a armadilha fiscal em que o Brasil está preso não seja desperdiçada.

O Legislativo cumpre o seu papel. Debate, emenda, revê. Mas há espaços estreitos pelos quais ele deve se movimentar, para que a roda da economia volte a girar, com o retorno dos investimentos, a reativação do mercado de trabalho etc. Um item essencial é o da inclusão ou não dos estados no projeto. Para que, aprovada a reforma, ela seja estendida a toda a Federação. A medida está na proposta original do Ministério da Economia, a mais adequada. No Fórum de Governadores, ontem em Brasília, foi pedido que haja uma flexibilização para que as assembleias legislativas possam estabelecer regras próprias para policiais e bombeiros.

Havia, ainda, a alternativa, do projeto do governo Temer, de conceder aos estados seis meses para decidirem o que fazer: aprovam suas próprias mudanças ou terão que adotar as avalizadas no Congresso compulsoriamente.

Seja como for, o correto é incluir toda a Federação na essencial adequação do sistema previdenciário à nova realidade demográfica do país, em que crescem as despesas (mais aposentados) e minguam as receitas (redução no número de jovens). Se não for assim, o déficit crescente da previdência de estados (e municípios) cairá inevitavelmente sobre o Tesouro. Persistirá alguma insegurança sobre a questão fiscal do país, fator negativo para a retomada da economia. O efeito é tão pernicioso que, mesmo com a queda dos juros, empresas podem continuar sem se endividar, para modernizar-se e/ou ampliar a capacidade produtiva. Será uma reforma meia-sola.

A inapetência de governadores e prefeitos para que eles mesmos façam reformas é conhecida. Duas décadas depois de autorizados a instituir regimes de previdência complementar para seu funcionalismo — a fim de adotar um teto sobre os benefícios previdenciários — , 16 dos 27 estados nada fizeram. Mais da metade.

Outro ponto essencial é a previdência do funcionalismo. Eles não querem submeter sua contribuição previdenciária a uma tabela progressiva, como existe no Imposto de Renda, para todos, e ainda desejam uma transição suave para que contratados antes de 2003 mantenham a integralidade (de seus salários na aposentadoria) e a paridade (terem os mesmos reajustes que o servidor da ativa). As regras de transição como um todo e as idades mínimas de 65 para homens e 62 para mulheres, a fim de que possam se aposentar, precisam ser preservadas. A economia de R$ 1 trilhão em dez anos é essencial.

Um fato positivo é que os governadores do PT, como disse ontem Wellington Dias (PI), não se negam a negociar o apoio à reforma.