quarta-feira, maio 09, 2012

Roteiro para a dívida de Estados e municípios - BOLÍVAR MOURA ROCHA


O ESTADO DE S. PAULO - 09/05/12


Os primeiros contratos de refinanciamento da dívida de Estados e municípios estão em vigor há 15 anos - metade de seu prazo - e nesse período o governo federal resistiu à recorrente pressão de devedores pela renegociação de suas obrigações. Ela se renova agora, na esteira da queda das taxas de juros reais. As propostas que têm marcado essa rodada recente tendem a inviabilizar uma causa justa, demasiado ambiciosas que são. Este artigo propõe agenda para o tratamento do problema.

Uma palavra sobre o contexto.Como já comentado à exaustão, o IGP-DI, indexador da dívida, descolou-se da inflação e inflou o saldo devedor. Os juros reais contratados, que representavam importante subsídio, tornaram-se punitivos diante das atuais taxas de juros de mercado. Até recentemente, a queixa limitou-se à inadequação do IGP-DI. Em texto definitivo sobre o assunto (Valor, 30/6/2011), o ex-secretário do Tesouro Nacional Eduardo A. Guimarães conta que há vários anos a própria União abandonou, por inadequado, o IGP-DI como medida da inflação. Substituí-lo pelo IPCA seria assegurar a taxa de juros real acordada pelas partes. O problema acentuou-se com a queda dos juros de mercado. Uma curiosidade: os contratos preveem que o descumprimento de obrigações acarretará a substituição dos encargos contratados pelo "custo médio de captação da dívida mobiliária interna do governo federal, acrescido de juros moratórios de 1% ao ano". No contexto atual, a punição representaria alívio.

A crise da dívida externa, só superada com a renegociação dos anos 90, eclodiu precisamente com o aumento radical na taxa de juros interbancária (Libor), à qual eram referenciados os contratos. Quando mudanças de circunstâncias atingem a essência do contrato, pode ser necessário promover sua alteração. Esse princípio vem do Direito romano e é abrigado em várias legislações domésticas, a nossa inclusive. Os devedores têm errado na dose, no entanto, nas soluções propostas, que embutem brutal perdão de dívida. Sua consequência prática é dar ao governo federal ótima justificativa para nada fazer.

Seria sólido o conjunto de três alterações: 1) substituir o IGP-DI pelo IPCA, retroagindo a 1999, quando o IPCA foi adotado como referência para a definição da meta de inflação. Isso reduziria o saldo devedor dos contratos e melhoraria os limites de endividamento e de investimento.2) Adotar limitador dos encargos, sem o que a pressão por renegociação ressurgirá toda vez que os encargos excederem o custo de captação do Tesouro. Tem sido mencionada a Selic, mas os próprios contratos contêm limitador melhor: os encargos previstos para o descumprimento de obrigações (custo médio de captação da dívida mobiliária interna mais juros de 1% ao ano).

3)Excluir do cômputo da receita líquida real, à qual está atrelado o limite de pagamento pelos devedores, a parcela de sua receita que passou a ser vinculada a certas despesas (saúde, educação) após a celebração dos contratos. Essas alterações não constituem novação ou prorrogação dos contratos e, por isso, não são vedadas pelo famoso artigo 35 da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). É verdade que será necessário, em algum momento, alterar a LRF. As prestações devidas vêm sendo glosadas pelo limite contratual de comprometimento da receita e o excedente, acrescido ao saldo devedor. Havendo resíduo a pagar ao final do prazo de 30 anos, o contrato prevê prazo adicional de 10 anos, sem limite de comprometimento da receita.Hoje já é possível afirmar que a conta não fechará: será preciso prorrogar o prazo contratual. Mas não é o momento de enfrentar esse tema.

O refinanciamento da dívida e o saneamento fiscal por ele permitido constituem importante capítulo da história da Federação, que é preciso preservar. Mas não está na ordem natural das instituições a transferência maciça de recursos de Estados e municípios para o governo federal, como ocorre atualmente. É preciso remediar a situação.

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