domingo, maio 17, 2020

Resolvam isso aí! - LUIZ CARLOS AZEDO

CORREIO BRAZILIENSE - 17/05

“A carreira militar é um canal de ascensão social, mas não é nem deve ser uma rampa de acesso direto ao poder político”


O aperto de mãos entre o falecido general Leônidas Pires Gonçalves, ministro do Exército, e o recém-empossado presidente José Sarney, em 1985, na transição do regime militar à democracia, simbolizou o momento em que a tutela militar sobre a nação, iniciada pouco antes da Guerra do Paraguai(1864 a 1870), ainda no Império, havia acabado. Durante mais de um século, até então, militares da ativa atuaram politicamente e se pronunciaram sobre a vida institucional do país, muitas vezes de forma truculenta e brutal. O gesto pôs um ponto final na ditadura implantada após a destituição do presidente João Goulart, em 1964.

Na madrugada de 15 de março de 1985, com a nação perplexa diante da internação de Tancredo Neves no Hospital de Base de Brasília, o então ministro do Exército, com a Constituição na mão, convencera as lideranças políticas da época de que o vice-presidente eleito, José Sarney, deveria tomar posse. Havia controvérsias, alguns achavam que Ulysses Guimarães, o líder do MDB, deveria assumir interinamente e convocar novas eleições. O então chefe da Casa Civil, ministro Leitão de Abreu, ajudou a dirimir dúvidas entre os dois principais protagonistas da democratização: Sarney queria que Ulysses assumisse. Seria o caos. Para evitar a crise, Ulysses sempre defendeu o contrário. O general comunicou a decisão da maioria: “Boa noite, presidente!”, disse-lhe ao telefone.

Nos bastidores do finado governo Figueiredo, alguns generais pretendiam aproveitar a situação para manter o regime. Além do próprio presidente da República, o ministro do Exército, Walter Pires, e o chefe do Serviço Nacional de Informações (SNI), Octávio Medeiros. Durante a madrugada, Pires ameaçou movimentar as tropas para manter João Batista Figueiredo, mas Leitão de Abreu disse-lhe que já não era mais ministro. Sua demissão viria publicada no Diário Oficial. Leônidas Pires Gonçalves era o novo chefe militar. Figueiredo saiu pelos fundos do Palácio do Planalto, não transmitiu o cargo. À Presidência, Sarney convocou uma Constituinte e passou o cargo ao sucessor eleito pelo voto direto, Fernando Collor de Mello, com a Constituição de 1988 em plena vigência. Presidiu o país em meio a turbulências, uma hiperinflação galopante e milhares de greves operárias e ocupações de terras, mas ajudou a construir um Estado democrático.

Certos momentos parecem congelar a História, como aquele do aperto de mãos do general e o político. No século passado, o principal foi Conferência de Yalta, na Crimeia, entre 4 e 11 de fevereiro de 1945, o segundo de três encontros entre Franklin Roosevelt (Estados Unidos), Winston Churchill (Reino Unido) e Josef Stálin (União Soviética), com o objetivo de repartir as zonas de influência entre as três potências vitoriosas. Entretanto, com o fim da União Soviética e o colapso dos regimes comunistas da Europa, o fio da história foi retomado, descongelando um filme iniciado com o atentado de Sarajevo, em 28 de junho de 1914, no qual o arquiduque Francisco Fernando, herdeiro do Império Austro-Húngaro, foi morto por um nacionalista sérvio, pretexto para a Áustria-Hungria, da qual faziam parte a Bósnia e a Croácia, declarar guerra à Sérvia, um mês depois, dando início à I Guerra Mundial.

Ressentimentos
No Brasil dos anos 1980, os militares se retiraram do poder derrotados, mas em ordem. Foram mais bem-sucedidos na estratégia de abertura política iniciada pelo presidente Ernesto Geisel do que na condução da economia, devido ao fracasso do II Plano Nacional de Desenvolvimento (PND), colapsado pela crise do petróleo. A anistia recíproca de 1979, consolidada pela nova Constituição, pôs uma pedra sobre o passado. Todas as tentativas de revisão que colocaram em risco esse pacto entre os militares e a antiga oposição foram rechaçadas, inclusive pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Restaram a eterna dor dos familiares dos desaparecidos e a frustração e ressentimento daqueles que viam na caserna uma via de ascensão ao poder político, e não, exclusivamente, uma vocação militar, como acontece desde 1985. A vida militar, que exige estudo, disciplina e sacrifícios, é um canal de ascensão e mobilidade social, como certas profissões liberais e carreiras do serviço público, mas não é nem deve voltar a ser uma rampa de acesso direto ao poder político na democracia.

Somente durante o governo de Luiz Inácio Lula da Silva, que bajulou e foi bajulado pelos comandantes militares, voltou-se a discutir o papel das Forças Armadas, numa ótica de projeção nacional na globalização, além da atualização e modernização das forças armadas e suas doutrinas. O ressentimento em relação à marginalização imposta por governos anteriores, principalmente o do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, porém, foi estimulado. Entretanto, o governo de Dilma Rousseff foi um desastre em relação aos militares. Havia ojeriza recíproca, por causa do passado, que os militares dissimulavam, mas a “presidenta” fazia questão de compartilhar, até nos elevadores. Quando o governo colapsou, com sua nova matriz econômica, em meio à recessão e a Lava-Jato, os militares lhe deram o troco. “Resolvam isso aí!”, dizia o comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, um grande líder militar, aos políticos que se queixavam. Era a senha para o impeachment.

Enfraquecido por denúncias, o presidente Michel Temer devolveu aos militares o Ministério da Defesa, nomeando o general Joaquim Silva e Luna para o cargo. O resto da história estamos assistindo. O engajamento dos militares na eleição de Jair Bolsonaro, na onda do descontentamento popular com a corrupção e a recessão; a formação de um governo assumidamente reacionário nas ideias, ultraliberal na economia e conservador nos costumes; no Palácio do Planalto. Generais pragmáticos, alguns com o cacoete do mandonismo, outros com gosto pela política do baixo clero, são comandados por um ex-capitão nostálgico dos tempos da linha-dura de Costa e Silva e Emílio Médici e Presidente errático. Certo estava o “Coronel Y”, nos idos da Revolução de 1930, que mais tarde viria a ser o marechal Castelo Branco, o primeiro presidente do regime militar, ao defender uma Lei de Inatividade que obrigasse todo militar a se desligar definitivamente da carreira ao assumir funções civis e deixar a fila das promoções andar. Como a célebre fotografia dos Três Grandes e Yalta, a questão militar foi “descongelada”. No lugar da mão amiga, já estamos vendo o braço forte exibir seus músculos, como se fosse uma reprise cinematográfica.

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