domingo, abril 12, 2020

Beijo, abraço, aperto de mão e o vírus - VINICIUS TORRES FREIRE

Folha de S. Paulo - 12/04

Não haverá um dia seguinte social e econômico até que se saiba o tamanho da epidemia



No dia depois do amanhã da epidemia, o aperto de mão deveria ser extinto, que dirá um beijo e um abraço, disse Anthony Fauci, o grande imunologista, consultor da Casa Branca para assuntos de Covid-19. Nos EUA, já é uma campanha.

Como vamos nos cumprimentar seria até um problema simpático para o dia seguinte, o dia da vitória contra o coronavírus. Mas não haverá um dia seguinte, a julgar pelo que dizem cientistas, mas arrastados meses de guerrilha contra o inimigo.

Um grande problema é que nem sabemos onde está o inimigo, pois ainda não há ideia de quantas pessoas já foram de fato infectadas. Assim, também não sabemos dos amigos, do risco de namorar, de crianças brincarem com os avós, de trabalharmos ao lado dos colegas e de nos juntarmos para qualquer atividade.

Por terrível que seja, o HIV pode ser contido por um pingo de juízo e um pedaço de borracha, mas uma conversa ingênua pode espalhar o corona. É um predador que pode nos esperar até na maçaneta, na maçã, na barra do ônibus ou no papel do pão.

Uma vitória de fato contra a epidemia depende, óbvio, de remédio que ao menos reduza a capacidade mortífera do corona à de um vírus da gripe, digamos, embora não se saiba qual a letalidade da Covid-19 (por falar nisso, nem mesmo precisamente a da gripe). “Por enquanto, exceto no que diz respeito a medidas de apoio, a infecção pelo SARS-CoV-2 é essencialmente intratável”, diz um editorial do “BMJ”, a reputada revista médica britânica, de 8 de abril.

Dizer que não se conhece a letalidade do coronavírus significa basicamente que não se sabe quantas pessoas foram infectadas (é menos difícil contar os mortos).

Um estudo amplo publicado na “Lancet” (“Estimates of the severity of coronavirus disease 2019: a model-based analysis”) estima que a letalidade seria de 0,66% (número de mortes por infectados na população em geral, não apenas entre “casos confirmados”). Pelos dados oficiais, a letalidade vai de menos de 2% (Coreia do Sul, Japão, Alemanha) a mais de 12% (Itália). Tal disparidade indica disparates nas contagens.

É mais um indício de que não sabemos quantos infectados há, com o que não sabemos quantas pessoas estão (possivelmente) imunizadas. Não sabemos com quem estamos falando. Com um imune? Doente assintomático? Vítima potencial? De quê? De qual risco de morrer?

Quantos casos teria tido a Itália até agora, por exemplo? Uns 150 mil, como diz a contagem oficial? Ou uns 2 milhões ou até 4 milhões (a depender de como se dê o chute, de qual número se use para a taxa de letalidade e para o tempo médio que a doença leva para matar)?

De qualquer modo, por estes números, a Itália ou qualquer lugar do mundo ainda estaria longe de ter chegado a um nível de imunização que dá cabo da epidemia. Logo, no “dia seguinte”, teremos de sair para a rua tateando, aos poucos, a não ser que sejamos salvos por avanços súbitos e ora inesperados na medicina.

Para que se tenha alguma boa medida da epidemia, é preciso fazer amostras nacionais, estudos que o Brasil e alguns países do mundo estão à beira de começar.

Enfim, trata-se aqui apenas de “um beijo, um abraço e um aperto de mão”, da volta do convívio social, da possibilidade de recomeço. Para recomeçar mesmo, haverá um sistema de relações e proteções sociais para refazer, uma economia para tirar da ruína, um sistema de cooperação internacional para reconstruir. É história para outro dia.

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