Conceitos imprecisos surgem, mas há espaço para diálogo
Ninguém mais tem dúvidas de que o século XXI embaralhou o mundo das ideias e abalou os paradigmas ideológicos. Após a Revolução Industrial, vivemos sob a polaridade entre capital e trabalho, liberalismo e socialismo. O Estado mínimo cuidava apenas de assegurar curso à ordem constitucional e jurídica, preservar a estabilidade da moeda e da defesa nacional.
O resto caberia à sociedade e aos indivíduos empreendedores. Era a famosa “mão invisível” de Adam Smith. As condições selvagens de organização do trabalho e da produção no mundo urbano-industrial, no entanto, despertavam forte resistência dos movimentos dos trabalhadores e dos socialistas.
O fim da bipolaridade começa já no final do século XIX, com o nascimento da tendência reformista liderada por Lassalle. Começava a surgir a ideia não de uma ruptura revolucionária, mas de reformar por dentro a democracia liberal e a economia de mercado. Em 1917, o socialismo revolucionário passa a ser real com a experiência soviética. As duas grandes guerras e a profunda recessão de 1929 cristalizaram a divisão do movimento socialista. Nascia a social-democracia.
A dissolução da União Soviética (URSS) e a queda do Muro de Berlim decretaram a falência do socialismo real. A globalização avançou. Vieram a internet e as redes sociais. As bases da democracia clássica começam a ser questionadas. Esse é um processo em curso.
Antes mesmo, o Estado assumiu configuração muito mais complexa, intervindo no mundo capitalista e democrático por meio da tributação, do gasto público, das políticas sociais e da regulação da economia de mercado. O fato é que os três grandes paradigmas ideológicos entraram em crise na morte do socialismo, na crise mundial de 2009 – que colocou em xeque ingenuidades liberais – e na crise fiscal do Estado de bem-estar social. Como disse outro dia o ex-deputado Roberto Brant: “Não foi a social-democracia que acabou, o que acabou foi o dinheiro”.
O Brasil vive um momento de inédita polarização e radicalização ideológica. Muita calma nesta hora.
É preciso enorme cuidado na manipulação de categorias teóricas, conceitos e princípios. Ou alguém acha que Trump é o ícone do liberalismo? Será que o capitalismo autoritário de Estado na China tem algo a ver com comunismo? Alguém imaginava a União Democrata-Cristã (CDU) e a social-democracia alemã, arqui-inimigas históricas, de mãos dadas resistindo aos extremos? A caricatura do “socialismo bolivariano” na Venezuela e a debacle de Cuba devem inspirar alguém? A globalização é a coroação do liberalismo, permitindo o livre trânsito de capitais e mercadorias, mas não de pessoas?
Novos conceitos imprecisos surgem: populismo autoritário, liberais na economia e conservadores nos costumes, esquerda democrática, terceira via, liberalismo conservador, liberalismo progressista. Enfim, há um novo mundo a exigir novas ideias.
O importante é que no Brasil e no mundo há um amplo espaço de diálogo entre liberais, social-democratas, democratas-cristãos, socialistas democráticos em torno dos desafios contemporâneos acerca da democracia, da economia de mercado socialmente regulada, da sustentabilidade ambiental, do combate às desigualdades e da mudança do papel do Estado.
Diante do complexo e desafiador cenário contemporâneo, o melhor é ficar com Raul Seixas: “Prefiro ser essa metamorfose ambulante do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo”.
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