Diante da confusão instalada no país, com o presidente confundindo suas opiniões pessoais com as do Estado brasileiro, fica necessário diferenciar politicas de Estado e de governo. Penso que é um direito de qualquer governo, por exemplo, redefinir a política de combate às drogas, como agora está fazendo o governo Bolsonaro. Podemos ser contrários, considerar, como considero, um retrocesso abandonar a política de contenção de danos, mas qualquer governo tem o direito de definir seus programas de saúde.
O que não pode é transformar em política de Estado suas idiossincrasias. Uma política de Estado, por exemplo, é considerar, a partir da Constituição de 1988, a tortura inafiançável, igual a um crime hediondo, insuscetível de anistia. Mas a anistia aprovada no fim da ditadura militar abarca também esse crime, considerado como crime contra a Humanidade.
Acho, porém, que a anistia, mesmo aprovada numa ditadura, não deve ser revista. O que uma política de governo pode fazer é rever os critérios para a indenização, como está sendo feito. O jurista José Paulo Cavalcanti, ex-ministro da Justiça e membro da Comissão da Verdade, lembra que, na verdade, foram duas anistias. “Uma aprovada no fim da ditadura militar (Lei 6.683, de 28/08/1979). E, outra, aprovada depois do fim da ditadura militar (EC 26 de 27/11/1985). Por um Congresso livre. Já em plena redemocratização”.
Com relação a fatos ocorridos na ditadura militar, José Paulo Cavalcanti lembra que o Supremo já definiu a questão, com fundamento em cláusulas pétreas da Constituição. Considerando, por larga maioria (7 votos a 2), não poder se penalizar ninguém por fatos anteriores às Leis de Anistia. De parte a parte.
“Não há como rever isso, para atingir fatos ocorridos há 50 anos”. O ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal (STF) Eros Grau foi o relator da ação no Supremo, aprovada por maioria. O que não impediu que, ao fim de seu voto, tivesse afirmado: “É necessário dizer, por fim, vigorosa e reiteradamente, que a decisão pela improcedência da presente ação não exclui o repúdio a todas as modalidades de tortura, de ontem e de hoje, civis e militares, policiais ou delinquentes”.
O jurista Joaquim Falcão, fundador da Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas do Rio e um dos criadores do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), lembra que, com a Declaração dos Direitos do Homem, das Nações Unidas, muitos consideram a estrutura institucional de defesa dos direitos fundamentais como incluída na política de Estado. Ele defende que a segurança nacional é politica de Estado. Crime organizado, milícias, traficantes, lavagens de dinheiro relacionadas, tudo isso passou a ameaçar o Estado.
Com relação às idiossincrasias do presidente, José Paulo Cavalcanti considera que é preciso esperar por medidas concretas, “se é que elas virão, algum dia”, para, só então, aumentar o nível das críticas. “Criticar grupos que tenham preferências sexuais seria uma ‘política’? De governo?, ou de Estado? A primeira constatação é que todos somos livres para dizer as besteiras que quisermos. Inclusive quem está no governo. Mas isso não pode ser considerado ‘política’, permanecendo no reino, apenas, das opiniões.”
O ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal (STF) Eros Grau ressalta que o artigo 2º da nossa Constituição é bem claro ao determinar que o Legislativo, o Executivo e o Judiciário sejam independentes e harmônicos entre si. “O que se extrai dessa independência e harmonia — na doutrina mais antiga referida como separação dos poderes — e da compreensão do todo que ela consubstancia (a Constituição) é o seguinte: exceto se e quando ela expressamente dispuser em outro sentido, (a) ao Legislativo incumbe fazer as leis, (b) ao Executivo aplicá-las e (c) ao Judiciário controlar sua aplicação pelo todo social, setor público e setor privado”.
“As políticas de governo competem ao Executivo, as de Estado são definidas pela Constituição. Suas idiossincrasias não podem afetar o cumprimento de suas funções”, afirma o ministro Eros Grau.
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