sexta-feira, agosto 08, 2014

Paranoia dogmática - JOSÉ RENATO NALINI

O ESTADÃO - 08/08


O universo jurídico é pródigo em labirínticas elucubrações. Mesmo assoberbada com o excesso de demandas, já que no Brasil tudo se judicializou, a Justiça tem enorme dificuldade em adotar a singeleza como parâmetro e a concisão como princípio. Ao contrário, prodigaliza interpretações que tornam praticamente impossível a realização do justo concreto, eis que insuperáveis as barreiras postas a uma compreensão sensata dos problemas.

Convive-se com uma realidade em que o discurso é mais importante do que o fenômeno; a observância dos cânones, mais relevante do que solucionar o problema. A fidelidade às velhas trilhas, quantas já superadas, é mais confortável à ousadia do enfrentamento do novo.

Alguns exemplos podem ser mais eloquentes. Alguém consegue demonstrar qual a porcentagem de respostas meramente processuais para as ações em curso, ou seja, aquelas decisões técnicas que deixam intocado - mas quase sempre agravado - o conflito real que deu origem à causa? Já se fez uma estatística do tempo e dos recursos financeiros despendidos em discussões envolvendo competência? A competência é uma regra processual destinada a propiciar uma distribuição equânime das ações. Como norma de procedimento, não se pode transformar em regra de hierarquia superior à do direito substancial. Todavia é grande o número de causas em que a questão prévia sobre a competência demanda largo tempo, em desprestígio do sistema de Justiça e para desespero da parte que espera se decida sobre quem vai decidir.

O que justifica a pulverização de ações judiciais sobre a mesma questão, a merecer solução díspar e muita vez antagônica, no mesmo tribunal? Quando se constata a profusão de lides de idêntico objeto, o sensato seria concentrar o julgamento para o mesmo órgão, e não permitir que outros se encarreguem de solucionar aquilo que já mereceu uma resposta. As lides repetitivas até mereceram tratamento legislativo consentâneo. Não existe, contudo, coragem para a reunião de todos os processos em curso, que ficaram sujeitos a uma única decisão. O óbice de pronto oferecido é o princípio do "juiz natural". É compreensível que exista o cuidado para que a distribuição não sirva a propósitos ilícitos ou desonestos. Para a parte, porém, o que interessa é que um juiz em atividade solucione, com rapidez e fundamentadamente, a causa que foi obrigada a mover perante o Estado-juiz.

Como explicar à sociedade, que remunera o equipamento judicial, que o mesmo direito lesado receba múltiplas respostas, a depender de um conjunto imenso de circunstâncias? É racional que um detentor de direito veja reconhecida a sua parcela e outro, em igualdade de condições, mereça indeferimento?

Pois é o que acontece com frequência em todas as instâncias. Tudo em nome de argumentos ponderáveis, mas que não subsistem a um teste de racionalidade e de eficiência. Não é eficiente uma Justiça que aceite reiterar julgamentos idênticos após a consolidação de um entendimento razoável sobre a matéria. Mecanismos que detectassem a produção de uma orientação jurisprudencial majoritária deveriam ser acionados para que a possibilidade de discussão sobre o mesmo tema cedesse perante a tese consolidada. Aliás, para isso se concebeu a criação de uma verdadeira Corte de Cassação, que viesse a interromper a multiplicação de leituras e uniformizasse a jurisprudência. Aspiração que ainda não surtiu efeitos na República Federativa do Brasil.

No âmbito da atividade-meio, o efeito perverso de enunciados teóricos não é menos nefasto. A contemporaneidade reclama servidores polivalentes, aptos a um desempenho repleto de desafios. A revolução eletrônica exige habilidades inusitadas, criatividade e pioneirismo. Alguns abnegados, por iniciativa própria, investem no contínuo aprimoramento e adquirem aptidões adequadas às urgências da Justiça. Mas não podem ser aproveitados senão em estruturas anacrônicas e preencher cargos de superada denominação, tudo em nome do chamado "desvio de função".

Assim como o Direito Processual está em déficit para com a eficiência que se exige da Justiça, deixando de oferecer respostas que obviem o mau uso de princípios salutares e também de distinguir entre processo e procedimento, o Direito Administrativo precisa ajustar-se ao contemporâneo. Não faz sentido o prolongamento de estéreis discussões sobre competência, quando se cuida de um único órgão judicial. Nem se admite que o mesmo texto legal venha a gerar tantas possibilidades de respostas jurisdicionais, entre si conflitantes. Menos ainda permitir que o funcionalismo desenvolva as suas potencialidades e se encarregue de atribuições novas, impostas pelo contínuo progresso das tecnologias da informação e da comunicação, mas reste encarcerado na blindagem do "desvio de função".

Um choque de racionalidade no universo jurídico se faz imprescindível. O Direito existe para solucionar problemas, não para institucionalizá-los. O direito posto em juízo não se pode transformar numa caótica barafunda de opiniões, todas fundamentadas, mas que tenham como resultado não a pacificação, e sim a perplexidade. E a sociedade brasileira assiste, atônita, ao campeonato de incontáveis interpretações, todas aceitáveis, mas que acentuam o relativismo da certeza jurídica.

Os dogmas são essenciais, porém levados ao paroxismo podem produzir efeito perverso e até paranoia. O Brasil, em inúmeros exemplos extraíveis da disfunção constatada no universo da Justiça, vive uma verdadeira paranoia dogmática ou um paranoico estágio em que as teorias colidem com a realidade e esta se rebela, com inteira razão.

Alguém se arriscaria a prever melhores dias, com a atual estrutura do sistema e a vontade de mudança que deveria motivar o Parlamento?

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