O GLOBO - 01/04
Bolívar foi descrito como um membro da rica elite local, aristocrata educado no exterior, inapto como comandante militar, vaidoso ao extremo
‘Era filho de uma das famílias mantuanas que, no período da supremacia espanhola, constituíam a nobreza crioula da Venezuela. Em consonância com o costume dos americanos ricos da época, ele foi mandado para a Europa aos 14 anos de idade. Da Espanha, seguiu para a França e residiu em Paris por alguns anos.
“De pé sobre um carro triunfal, puxado por doze jovens vestidas de branco e enfeitadas com as cores nacionais, todas escolhidas entre as melhores famílias de Caracas, Bolívar, com a cabeça descoberta e uniforme de gala, agitando um pequeno bastão, foi conduzido por cerca de meia hora, desde a entrada da cidade até sua residência. Proclamando-se ‘Ditador e libertador das Províncias Ocidentais da Venezuela’, formou uma tropa de elite que denominou de sua guarda pessoal e se cercou de pompa própria de uma corte. Entretanto, como a maioria de seus compatriotas, ele era avesso a qualquer esforço prolongado, e sua ditadura não tardou a degenerar numa anarquia militar, na qual os assuntos mais importantes eram deixados nas mãos de favoritos, que arruinavam as finanças públicas e depois recorriam a meios odiosos para reorganizá-las.
“Bolívar tornou a se reunir com os outros comandantes na costa de Cumaná, mas, ao ser recebido com rispidez e ameaçado por Piar de ser levado a julgamento na corte marcial por deserção e covardia, retrocedeu prontamente para Los Cayos.
“Piar, o conquistador da Guiana, que outrora havia ameaçado levar Bolívar à corte marcial como desertor, não poupava de ironias o ‘Napoleão das retiradas’ e, por conseguinte, este aprovou um plano para se livrar dele. Sob as falsas acusações de ter conspirado contra os brancos, planejado um atentado contra a vida de Bolívar e aspirado ao poder supremo, Piar foi levado a julgamento por um conselho de guerra presidido por Brion, condenado, sentenciado à morte e fuzilado em 16 de outubro de 1817.
“Com um tesouro de uns 2 milhões de dólares, obtidos dos habitantes de Nova Granada mediante contribuições forçadas, e dispondo de uma tropa de aproximadamente nove mil homens, um terço dos quais compunha-se de ingleses, irlandeses, e outros estrangeiros bem disciplinados, coube-lhe então enfrentar um inimigo despojado de todos os recursos e reduzido a uma força nominal de 4.500 homens, dois terços dos quais eram nativos e, por conseguinte, não podiam inspirar confiança nos espanhóis. [...] Se Bolívar tivesse avançado com arrojo, suas simples tropas europeias teriam esmagado os espanhóis, porém ele preferiu prolongar a guerra por mais cinco anos.
“Bolívar já não julgou necessário manter a aparência de ser o comandante supremo, delegou toda a condução dos assuntos militares ao general Sucre, e se restringiu às entradas triunfais, aos manifestos e à promulgação de constituições. Por meio de sua tropa de guarda-costas colombianos, manipulou a votação do Congresso de Lima, que, em 10 de fevereiro de 1823, transferiu para ele a ditadura. [...] Ali, onde as baionetas de Sucre imperavam, Bolívar deu livre curso a suas inclinações para o poder arbitrário, e introduziu o ‘Código Boliviano’, numa imitação do Código Napoleônico.
“O que Bolívar realmente almejava era erigir toda a América do Sul como uma única república federativa, tendo nele próprio seu ditador. Enquanto, dessa maneira, dava plena vazão a seus sonhos de ligar meio mundo a seu nome, o poder efetivo lhe escapou rapidamente das mãos.”
Um membro da rica elite local, aristocrata educado no exterior, inapto como comandante militar, vaidoso ao extremo, dependente da ajuda dos próprios “imperialistas” para “libertar” seu povo, tirano e covarde: assim essas linhas retratam Simón Bolívar. Quem teria escrito uma biografia tão negativa do herói (ou mito) latino-americano? Algum conservador reacionário? Um golpista de direita, talvez?
Nada disso. Trata-se da biografia que Karl Marx escreveu para atender a um pedido (pago) de Charles Dana para a “New American Cyclopaedia”, em 1857. O tom do texto, excessivamente ríspido, despertou a atenção do contratante, que chegou a reclamar com o autor. Em carta a seu amigo Engels, Marx explicou seus motivos: “No que concerne ao estilo preconceituoso, certamente saí um pouco do tom enciclopedístico. Seria ultrapassar os limites querer apresentar como Napoleão o mais covarde, brutal e miserável dos canalhas.”
O problema é que nossos marxistas não leem Marx. Bolivarianismo e marxismo são como água e óleo: não se misturam. É preciso escolher: ou um, ou outro. Defender ambos é impossível.
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