quarta-feira, março 05, 2014

Spartacus e os black blocs - PAULO NASSAR

CORREIO BRAZILIENSE - 05/03

Se, por volta do ano 70 a.C., em plena vigência do Império Romano, o jornal Corriere Della Sera já existisse, provavelmente traria manchetes bombásticas sobre os gladiadores que iniciaram uma revolta liderados por Spartacus, guerreiro da Trácia. Verdadeira guerra civil consubstanciada numa série de ataques aos nobres de Roma e seus símbolos. Seriam chamados de vândalos e sua violência seria condenada pelo noticiário em latim.

A bem da verdade, Spartacus era um escravo, muito longe de qualquer vestígio de cidadania. A bem da verdade, Spartacus e os companheiros gladiadores não tinham canais institucionais de diálogo para fazer valer as suas reivindicações. A bem da verdade, não havia redes sociais na internet e muito menos imprensa livre. Todas essas faltas, porém, justificariam as sangrentas mortes e atrocidades cometidas pelos lutadores contra os opressores? Aos olhos do nobre romano, muito pelo contrário. Foi por isso que o trácio e seus correligionários foram brutalmente crucificados e assassinados.

Não se quer praticar aqui nenhum tipo de anacronismo ou comparar o incomparável por mais de 2 mil anos de história. Usa-se o exemplo apenas para contextualizar uma dúvida. O surgimento do novo tipo de ativismo violento no Brasil seria um recado ou oportunismo? Existem canais institucionais de diálogo e representação dos excluídos? E aqui se usa o termo excluído num conceito mais amplo do que o usual, abrangendo os membros da nova classe média que não conseguem ter acesso a qualquer tipo de autoridade.

Ou os black blocs, como as primeiras investigações sobre a covarde morte do cinegrafista Santiago Andrade demonstram, seriam apenas uma massa de manobra por parte de interesses político-partidários? Alguém poderia citar Buda e recomendar o caminho do meio, ou seja, os black blocs seriam parte protagonistas, parte coadjuvantes no novo cenário de reivindicação política no Brasil.

Rejeitamos a hipótese do caminho do meio, pois ela nos parece reunir dois argumentos incompatíveis entre si. Ou bem aceitamos a presença dos black blocs como agentes políticos ativos, ou a revogamos por ser apenas reflexo de movimentos tradicionais subjacentes, tais quais as imagens da caverna no mito de Platão. Aceitar, é bom que se diga, não significa legitimar, muito pelo contrário. Afinal, aceitamos a existência da Al Qaeda, das Brigadas Vermelhas, do ETA, mas nem de longe isso significa qualquer anuência por seus métodos.

A violência é poderosa narrativa no meio político. Usamos o exemplo de Spartacus, da Al Qaeda, das Brigadas Vermelhas, do ETA e poderíamos citar muitos outros grupos que se utilizaram ou utilizam de táticas terroristas. A tentação das autoridades é sacar narrativa igualmente bélica para combater esse fenômeno numa tentativa de dar satisfação à sociedade. Porém, se há uma coisa que a história nos ensina - sem riscos de anacronismo - é de que essa estratégia narrativa é, na prática, combater chamas com gasolina.

A questão que nos importa neste momento não é psicológica, sociológica ou política. Importa-nos o uso da narrativa da violência por parte dos black blocs como clara tática de exposição midiática, à semelhança de grupos terroristas. A comparação com Spartacus não é gratuita. Tal qual o guerreiro trácio (e diferentemente de agrupamentos como Al Qaeda, Brigadas Vermelhas e ETA), não há uma pauta clara de reivindicação. Assim como os gladiadores revoltosos do Império Romano, os black blocs parecem dizer "somos contra tudo isso que está aí".

Edward Gibbon, autor do clássico Declínio e queda do Império Romano, talvez possa contribuir com uma lição narrativa que black blocs e autoridades deveriam considerar nesse cenário de ativismo belicista no Brasil. Ao estudar as entranhas de mais de mil anos de voltas e reviravoltas nas fronteiras romanas, conclui: "No tumulto da discórdia civil, as leis da sociedade perdem a força, e o lugar delas raramente é preenchido pelas leis da humanidade. O ardor da disputa, a arrogância da vitória, o desespero do êxito, a lembrança de injúrias passadas e o temor de perigos vindouros, tudo contribui para inflamar o espírito e calar a voz da piedade. Por tais motivos, quase todas as páginas da História estão manchadas de sangue civil". Que a frase do historiador britânico possa iluminar outras narrativas para o protagonismo cidadão brasileiro.

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