terça-feira, março 11, 2014

Entre dois amores - MIRIAM LEITÃO

O GLOBO - 11/03

Geraldine tem o coração partido. Teme o que se passa na Venezuela, onde nasceu e vive. Teme o que se passa na Ucrânia, onde morou sete anos, estudou piano e tem muitos amigos. Por coincidência, os dois países que mais ama estão neste momento disputando as manchetes dos jornais pelo agravamento das crises que os abala. Eu a entrevistei por e-mail.

'Tenho medo de uma escalada de violência militar entre Ucrânia e Rússia e tenho medo de que os ucranianos não consigam realizar seu sonho europeu", diz ela sobre o país com o qual mantém relações constantes através de uma vasta rede de contatos. Pelo menos um quarto dos seus amigos do Facebook são ucranianos. "Na Venezuela, o descontentamento está virando desespero e a reação repressiva e sanguinária do governo está piorando tudo. Este é o momento mais perigoso do país", relata. Ela se define como "de esquerda", acha que a chegada de Hugo Chávez ao poder permitiu uma mudança histórica que deu voz a milhões que não eram ouvidos. Mas repudia o clima de guerra entre os dois lados do país e culpa o governo. "Ele tem que governar para todos e não apenas para os seus simpatizantes."

A venezuelana Geraldine Mendez, 46 anos, pianista, viveu em Kiev entre 1992 e 1999 estudando no conservatório Piotr Ilich Tchaikovsky. Fala e escreve russo e já fez até tradução simultânea. Entende e lê ucraniano, mas não com a mesma fluência. No conservatório, as aulas eram em russo.

Ao chegar na Ucrânia, conta, achou o cotidiano do país "um pouco surrealista". Era um momento de escassez causado pelo fim da União Soviética. "Não havia muito o que comprar e havia fila pra tudo e racionamento. Eu só comprava 250g de manteiga e um quilo de açúcar por mês apresentando minha carteirinha de estudante." Geraldine achou aquele mundo totalmente diferente da sua Venezuela. Hoje, vive a ironia de ver na sua pátria o que estranhou na Ucrânia: desabastecimento, filas e racionamento. "Cada vez mais a Venezuela de hoje se parece com a Ucrânia dos anos 90."

Na Ucrânia, estudou nos livros de história a manipulação dos fatos na era soviética. "As cartas completas de Rachmaninov foram publicadas, mas, claro, todas as correspondências do seu período de imigração para os Estados Unidos estavam ausentes da edição." Hoje, ela vê na Venezuela o governo manipulando informação e cerceando a imprensa. "O protesto deveria terminar em uma negociação sincera com as autoridades, mas como pode haver isso se o protesto é desqualificado, invalidado e considerado um crime?"

Geraldine acha que não há um conflito étnico na Ucrânia. "É impossível dizer que há duas comunidades, uma russa e uma ucraniana. Eu não diria que há uma diferença étnica, mas sim de origem e isso nunca impediu ou definiu as relações interpessoais. Simplesmente cada pessoa respondia no idioma em que era perguntado, que em Kiev, em geral, era russo. Não existe uma divisão desse tipo."

O conservatório onde ela estudou ficava em frente a Maidan, a praça central de Kiev onde houve manifestações e a violenta repressão com dezenas de mortos. "Por todos os meus companheiros, foi muito doloroso ver as cenas ocorridas lá desde dezembro. Por outro lado, me surpreendeu a determinação e força dos ucranianos."

Ela se impressionava com a falta de direitos dos ucranianos diante da força policial. "Um dia que havíamos deixado a porta aberta do pequeno apartamento das residências do conservatório, me vi com um policial dentro do meu quarto, parado ao lado da minha cama, me pedindo o passaporte, e eu estava de roupa íntima." Outro dia, na Venezuela, amigos dela tiveram a casa invadida pela Guarda Nacional à procura de armas. "Eles só tinham as panelas dos 'panelaços'; minha irmã foi intimidada com armas pesadas quando estava batendo panela em frente ao edifício onde mora."

Na Ucrânia, ela viu que todos temiam que algo violento fosse acontecer na Crimeia. E a "Europa era muito longe, política e psicologicamente". A Venezuela está cada vez mais distante do país com o qual sonhou. O aumento da violência faz com que, segundo ela, "viver na Venezuela seja uma roleta-russa, em que após um assalto se fica feliz por ter saído vivo."

Assim vive Geraldine, tocando seu piano em Caracas e sofrendo pelos dois países que ama. Tão distantes, mas, para ela, tão parecidos.

Um comentário:

Anônimo disse...

Mas, claro, como não poderia deixar de ser, Geraldine é "de esquerda".
Ora, então tá reclamando do quê, comuna?