O Estado de S.Paulo - 09/06
Sem pretensão a cenário de Hemingway, a Belo Horizonte dos anos 60 era, a seu modo, uma festa móvel, pois a cada sábado a rapaziada vagueava de balada em balada, em todas encontrando a mesma fauna com que topara nas anteriores. Naquela madrugada havíamos passado, meu amigo e eu, por duas ou três, e, insaciáveis, batalhávamos uma saideira. Nada; a família mineira parecia imersa num sono unânime. Estávamos a pique de nos recolher também quando, no alto de um jardim, divisamos uma varanda acesa, e nela um promissor burburinho. É aqui, disse eu, e tomamos a escadinha sinuosa que levava à casa. Mal botei os pés na varanda e vem de lá um amigo de meu pai, a me envolver num abraço sísmico: um consolo, disse ele, receber a minha solidariedade num momento tão penoso!
Momento penoso foi o nosso, quando as névoas do álcool nos deixaram ver que nossos passos trôpegos nos haviam conduzido a um velório tão incipiente que a defunta ainda nem chegara à sala. Não fazia o menor sentido estarmos ali. Para o filho da falecida, porém, pouco importava: ao longo dos anos que lhe restaram, não podia me ver sem, comovido, desenrolar o carretel de sua gratidão.
***
Nos primórdios da televisão em Belo Horizonte, o programa de entrevistas recebia naquela noite um punhado de figurões municipais, enfileirados num sofá de courvin de pés palito. O tema eram mazelas várias da nossa capital, sobre as quais, em dado momento, se quis ouvir um antigo prefeito, o doutor... vamos chamá-lo de Olegário. Ia o homem em meio a uma frase, quando, inteiriçando-se no sofá, emborcou sobre o colo do vizinho. Saltaram todos para socorrer o homem, àquela altura já inerte, pois morrera ao vivo, sob o olhar boquiaberto de uma câmera, até que o diretor de TV cortasse a transmissão e pusesse em nossas telas um chuvisco, um formigante nada.
Meia hora depois, volta a imagem, mostrando o mesmo cenário, os mesmos figurões, agora menos apertados no sofá. O entrevistador, compungido, faz um rápido informe antes de reiniciar o debate no ponto em que fora interrompido:
- Como dizia o saudoso doutor
Olegário...
***
Ao cabo de meses de luta contra insidiosa moléstia (os obituários fugiam da palavra câncer), o doutor Pena finalmente esticara as venerandas canelas, e a família já tomava providências para o velório, que teria lugar ali mesmo, na residência do falecido. Filhos e genros tratavam de empacotar o finado em sua definitiva indumentária, quando, aberto o guarda-roupa, de lá saltou um problema: nenhum dos jaquetões do patriarca tinha um único botão. E àquela altura da madrugada não havia como remediar a falta, sem o que não se poderia dizer que o doutor abotoara o paletó. Estavam todos entregues à perplexidade quando um dos filhos, iluminado por certeira suspeita, deixou precipitadamente o quarto - para retornar em minutos, trazendo pela orelha um dos netos do defunto, e, com ele, uma caixinha repleta de craques do futebol de botão.
***
Aquele não foi o único atrapalho da acidentada madrugada em que o doutor Pena passou desta para outra, não se sabe se melhor ou pior. Pelas 11 da noite, Marilza, a cozinheira da casa, se recolhera a seu quarto, que ficava sobre a garagem. Exausta, pois tivera um dia de ininterrupta assistência não apenas culinária à caudalosa família.
Às 3 horas, emergindo de viscosos pesadelos, ela acordou, empapada de maus presságios, abriu a janela, que dava para a entrada do carro - e eis que o pesadelo prosseguia: caminhando na sua direção, lá vinham uns homens de preto, a carregar enorme volume. Alguma coisa que eu comi - quis acreditar Marilza, batendo a janela.
Como voltasse a acordar uma hora mais tarde, resolveu fazer um café para o pessoal. Ao entrar na copa, deu de cara com uns homens, os mesmos do pesadelo!, que desciam a escada com o tal volume, de inequívoco conteúdo. Só faltava a moça, varada de pavor, deixar cair a bandeja com o bule e as xícaras.
Não faltou.
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