domingo, março 31, 2013

O grande mito - CAETANO VELOSO

O GLOBO - 31/03

Se a Comissão fizer algo útil e justo, mesmo sob Feliciano, aplaudirei a Comissão. O que não quer dizer que aplaudo a escolha do seu presidente.


A pauta da primeira reunião da Comissão de Direitos Humanos e Minorias sob a presidência de Marco Feliciano foi o grave caso da contaminação por chumbo na cidade de Santo Amaro da Purificação, no estado da Bahia. Feliciano disse aos reclamantes que eles teriam sucesso em suas demandas se tivessem o apoio de ruidosos manifestantes, como os que desejam destituí-lo. Bem, ele não o disse nessas palavras, mas redigi como pude o que captei do sentido de sua fala. Participei de uma manifestação pela saída de Feliciano e já mencionei brevemente aqui que acho inapropriada a escolha do seu nome para o cargo. Mas usei muito mais espaço quando, faz algum tempo, tratei da questão do chumbo em minha cidade. Nossas respostas públicas ao andamento dos fatos políticos são quase inevitavelmente desproporcionais. Nesse caso, a minha não foi: dou muito maior importância à questão da violência ambiental que Santo Amaro sofreu e sofre do que ao disparate que é a escolha do presidente da Comissão. Não estou dizendo que aquela questão é objetivamente mais importante do que esta (talvez o seja), mas que pessoalmente dou muito maior importância à questão santamarense. Se a Comissão fizer algo útil e justo a respeito, mesmo sob Feliciano, aplaudirei a Comissão. O que não quer dizer que aplaudo a escolha do seu presidente.

Vi Feliciano no programa “Agora é tarde”, de Danilo Gentili. Achei boa a entrevista. Tanto o apresentador quanto o entrevistado se saíram bem. Gentili foi irreverente e um tanto obsceno (parece que é esse o tom do programa), e Feliciano foi firme (sem deixar de ser levado pela ousadia de Gentili, tendo chegado, na ânsia de mostrar que não se assombrava com coisa nenhuma, a soar um tanto obsceno ele próprio). Gentili conseguiu dizer diretamente a ele coisas que a maioria das pessoas que veem seu programa (e muitas que não veem) gostariam de poder dizer. Numa determinada altura, por causa da história de não admitir que suas filhas se expusessem a ver “dois homens barbados e com as pernas raspadas se beijando”, Feliciano disse que a sociedade brasileira não está preparada para isso. Bom, o passo seguinte seria: então preparemo-la. De fato, a frase do pastor esconde um “ainda”. O diálogo aberto entre Gentili e ele, na TV, pareceu contribuir consideravelmente para essa preparação. O melhor momento do pastor foi quando ele disse que é um deputado eleito com muitos votos e, portanto, representa um aspecto da mentalidade do povo. O pior foi quando, tendo de responder sobre sexo anal heterossexual (que Gentili chamou de “transar pela bunda”, expressão que foi, pelo menos em parte, repetida por Feliciano), ele se saiu com uma restrição higiênica, chamando o ânus de “um esgoto”. Agostinho já notara, com muito maior elegância, que nascemos “entre fezes e urina”.

Vi hoje na internet (estou gripado) uma briga bastante feia entre, de um lado, Marco Feliciano e Silas Malafaia, e, de outro, Edir Macedo. O bispo editou imagens de umbanda (que ele chama de “sessão espírita”) ao lado de cenas de possessão pelo Espírito Santo de fiéis de igrejas pentecostais. Estampando a pergunta: “Qual a diferença?” Com isso dizendo que esses rodopios e esse lançar-se ao chão dos evangélicos é algo tão suspeitamente demoníaco quanto os rituais afro-brasileiros. As respostas dos dois pastores são muito bem articuladas. Vale a pena ver no YouTube: basta escrever “Feliciano responde a Edir Macedo” (Silas aparece logo ao lado). Ambos dizem que a Universal de Macedo já fez e faz muita coisa igualmente parecida com aqueles ritos. Mais sério: Moisés faz o galho virar serpente, os feiticeiros do faraó também fazem, mas a serpente de Moisés engole as deles: Deus é maior que quaisquer manifestações do demônio. Os três líderes religiosos parecem estar lutando por clientela. Para um homem não religioso como eu, é o que fica evidente.

Vi Mautner no Jô. Sou um homem não religioso? Ouvi-o dizer que o Brasil e sua amálgama são a nova coisa, que salvaremos o mundo. Na luta contra os malditos que envenenaram minha terra, invoquei Nossa Senhora da Purificação. Lendo “O mundo líquido”, de Bauman, aprendi que os países em desenvolvimento estão fadados à desgraça. Mas tendo a pensar que a política econômica mal explicada de Dilmantega (sugestões como as de André Nassif , Carmem Feijó e Eliane Araújo sendo cruamente rejeitadas) nos atrasa em relação aos outros países para nos resguardar de um sucesso dentro do que ainda não é o que devemos ser. Nossa Senhora da Purificação de Santo Amaro, o Jesus de Nazaré do Mautner, o Dom Sebastião de Agostinho, é isso que minha alma intui que nos guia a algo acima dessa lixeira.

Um comentário:

Anônimo disse...

“Ouvi-o dizer que o Brasil e sua amálgama são a nova coisa, que salvaremos o mundo.”
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
Questão prática que tupinicamente evitam os arautos: Salvaremos como?
Se não salvamos nem mesmo o Subaé e a Lagoa Rodrigo de Freitas...
É mais ou menos como nas obras do Engenhão e do metrô de Salvador: joga-se um projeto básico e evitam-se os detalhes.
Sejamos um pouquinho menos pretensiosos.
Tenho pra mim que Mautner, o filho do holocausto, repete o sonho deslumbrado daquele austríaco fugitivo do holocausto Stefan Zweig: “O Brasil é o país do futuro.”
Stefan não esperou pra ver; suicidou-se. (Esperemos que Mautner não o repita.)
Ficou a frase.
...Fala sério, tô ouvindo essa conversa desde que me entendo por gente.
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No mais, há de se reconhecer, Caetano, pro bem ou pro mal, é dos poucos que se expõem e têm algo a dizer – mesmo que eventualmente dele se discorde.