domingo, março 31, 2013

Adeus ao trema - LUIS FERNANDO VERÍSSIMO

O ESTADÃO - 31/03

A reforma ortográfica acabou com o trema, e só então me dei conta de que eu nunca o tinha usado. Sempre o ignorei. Os revisores, se quisessem, que acrescentassem os tremas onde cabiam. Por vontade própria, nunca botei olhos de cobra em cima de nenhum u.

E agora que o trema desapareceu oficialmente, fiquei com remorso. Como me penitenciar? Peço só mais uma oportunidade para compensar meu descaso com o trema usando-o num texto. Li que, com a reforma, o trema só continua a ser usado legitimamente em nomes estrangeiro como Müller e Anaïs. Uma história para Müller e Anaïs, portanto. Atenção, revisor: mantenha todos os tremas.

Uma história com seqüência e conseqüência.

Talvez uma história policial: a dupla Müller e Anaïs atrás de delinqüentes.

Ou uma história de excessos eqüestres levando ao uso freqüente de ungüentos.

Ou uma simples cena doméstica. Müller e Anaïs na cozinha do seu apartamento, eqüidistantes de um pingüim em cima da geladeira. Müller acaba de chegar da rua com um pacote.

- Anaïs, esse pingüim...

- Quequitem?

- Eu não agüento esse pingüim, Anaïs.

- Ele está aí há cinqüenta anos e só agora você nota?

- Cinqüenta anos, Anaïs?

- Está bem, cinco. Um qüinqüênio.

- Um qüinqüênio?

- Um qüinqüênio. E vai ficar aí outro qüinqüênio.

- Não se usa mais pingüim em geladeira, Anaïs. É uma coisa do passado. Como o trema.

- Pois eu gosto e está acabado. O que você trouxe nesse pacote?

- O que mais poderia ser? Lingüiças. As ultimas com trema que tinham no super.

Pronto. Acho que estou redimido. Adeus, trema. E desculpe qualquer coisa.

SEIOS

Lembro de ter lido, há algum tempo, que um carregamento de seios postiços a caminho da Austrália tinha desaparecido. Não posso descrever minha alegria ao ler a notícia. Abandonei, imediatamente, toda preocupação com desastres naturais e econômicos e me entreguei a especulações sobre o fato insólito, ou, no caso, fofo. A notícia não trazia muitos detalhes. Aparentemente, tinham perdido contato com um navio carregado com 120 mil seios postiços – ou 60 mil pares, não sei. A localização do navio quando desaparecera não era revelada.

Se fosse no Oceano Indico – especulei alegremente – a explicação podia ser um ataque de piratas da Somália, que teriam ocupado o navio, aberto os seus porões, mergulhado de ponta-cabeça na carga, gritando “Alá seja louvado!” e no momento discutiam o valor do seio postiço no mercado para cobrar o resgate.

O navio poderia ter naufragado, o que imediatamente sugeria a imagem de 120 mil seios boiando no oceano.

– Piloto de avião de busca para base: acho que localizei destroços do naufrágio, boiando sugestivamente na superfície. Cambio.

Náufrago abandonado na proverbial ilha deserta vê seios e mais seios chegarem na praia. Olha para o céu, abre os braços e grita: “Que parte do meu pedido você não entendeu, Senhor?!”

Mas o maior mistério de todos era: o que 120 mil seios postiços iam fazer na Austrália? Neste ponto deixei de me divertir com a notícia. Tive uma visão pungente de 60 mil travestis australianos esperando, inutilmente, no porto.

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