sábado, janeiro 12, 2013

A arte da epígrafe - SÉRGIO AUGUSTO

O ESTADÃO - 12/01


Numa pilha de leituras recentes e em perspectiva pego a esmo alguns volumes, e constato: as epígrafes saíram menos de moda do que eu presumia. Ainda bem. Seria um baque para minha bisbilhotice literária vê-las cada vez mais escassas, em desuso, quiçá em extinção.

Depois da capa, da tipologia e dos excertos da contracapa, a(s) epígrafe(s) é (são) o meu primeiro objeto de curiosidade na apreciação de um livro. Outros preferem ir direto às primeiras linhas do autor, mas desconfio que a maioria se dê por satisfeita apreciando as citações, ora familiares, ora esotéricas, frequentemente intrigantes, que as antecedem e, muitas vezes, lhes enriquecem o sentido.

Forma literária simbiótica, meio prefácio condensado, meio resumo, meio contraexemplo, a epígrafe é o vestíbulo do livro. Não lhe é imprescindível, nem abono de qualidade. Grandes autores (Flaubert, Balzac, Eça, Proust, Faulkner, Virginia Woolf, Graciliano Ramos, entre outros) a dispensam ou dela se utilizam com avara parcimônia (caso de Machado de Assis), conduzindo-nos diretamente ao que de fato interessa. E se o que de fato interessa começa com uma frase ou expressão de impacto como “Me chame de Ishmael” (Moby Dick) ou “Nonada” (Grande Sertão: Veredas), nenhuma epígrafe lhe faz falta. Se bem que Herman Melville preceda sua narrativa com um longo preâmbulo “etimológico” recheado de informações sobre baleias, misturadas a uma dezena de citações bíblicas e literárias, passível de ser tomado por uma epígrafe.

Aberturas lapidares como a de Moby Dick e Ana Karenina (Tolstoi, a propósito, garimpava à beça nas Sagradas Escrituras) já inspiraram ensaios e pequenas antologias. As epígrafes só em outubro do ano passado ganharam seu primeiro florilégio: The Art of Epigraph - How Great Books Begin (A Arte da Epígrafe - Como os Grandes Livros Começam), compilado por Rosemary Ahern e editado pela Atria Books (256 págs., US$ 9.99 na edição Kindle). Não é um tratado acadêmico, apenas um compêndio de trechos de prosa, poesia, canções, cartas, diálogos de filmes e peças, provérbios e aforismos, que serviram de epígrafes a obras escritas nos últimos sete séculos.

Chaucer talvez tenha sido o primeiro a exordiar seus relatos (Os Contos da Cantuária) com uma epígrafe. Isso no final do século 14, quando então tinha outro nome (“motto”, mote) e a confundiam com um prefácio. Entre seus precursores mais ilustres figuram Cervantes (Dom Quixote, 1605) e Swift (As Viagens de Gulliver, 1726). A ficção de modernistas glamourosos como Hemingway e Fitzgerald tornou-a popular na primeira metade do século passado.

A Bíblia, Shakespeare e Proust lideram o ranking de citações. Dante, por incrível que pareça, frequenta menos os livros do que Emerson, Borges, Milton e Wilde. Com uma frase (“Vocês são uma geração perdida”), ouvida de um garagista parisiense por Gertrude Stein, Hemingway epigrafou um romance (O Sol Também se Levanta) e batizou uma época. Alguns autores, entre os quais Stendhal e Isaac Asimov, inventaram citações apócrifas, extraídas de obras fictícias. Não era menos fictício o poeta Thomas Parke D’Invilliers, cujos versos preludiam O Grande Gatsby. Fitzgerald o introduzira como um dos maiores amigos do protagonista de seu romance de estreia, Este Lado do Paraíso.

Tentei preencher as lacunas deixadas pela pesquisa de Rosemary Ahern, estendendo-a à literatura de língua portuguesa e espanhola. Também na periferia a Bíblia ganhou disparado. Encontrei trechos do Velho e do Novo Testamento em autores tão distintos quanto Lima Barreto, Octávio de Faria, José Saramago e Marques Rebelo. Outras presenças constantes: Poe, Cervantes, Balzac, Eliot, Montaigne, Tolstoi, Renan, Pascal, Rimbaud, Neruda, Chekhov, Baudelaire.

Mas também é notável, além de gratificante, a incidência de autores de menor ou nenhuma projeção internacional, talentos nacionais e regionais, como, para só citar dois exemplos, o poeta alagoano Jorge de Lima (pinçado por Raduan Nassar para Lavoura Arcaica) e o compositor colombiano Leandro Diaz (que García Márquez, avesso a epígrafes, destacou em O Amor nos Tempos do Cólera). Nas duas vezes em que usou uma epígrafe, Jorge Amado optou pelos versos de um conterrâneo (Gregório de Matos) e por cantigas da zona do cacau da Bahia.

Talvez nenhum outro brasileiro contemporâneo supere a marca de Campos de Carvalho: em quatro livros, cinco epígrafes (Vaca de Nariz Sutil tem duas). Na média supera Rubem Fonseca, que publicou seis vezes mais e só num terço de suas obras pespegou uma citação erudita entre o título e a abertura do primeiro conto ou capítulo, bem ao estilo de seus pernósticos narradores, ou seja, no original, sem tradução: Horácio em latim e Villon em francês, em Feliz Ano Novo, e Carlo Ginzburg em italiano e Joyce em inglês, em Agosto.

Borges é o campeão continental da categoria. Como citado e citador. Contei umas 15 epígrafes em sua obra, metade extraída de autores de língua inglesa, as demais colhidas no Alcorão, no bíblico Jó, no espanhol seiscentista Quevedo, no grego clássico Apolodoro, em Renan, Diderot e na islandesa Saga dos Volsungos. Anglófilo mais que assumido, Borges bisou Yeats (em Tema do Traidor e do Herói e na Biografia de Tadeo Isidoro Cruz) e em O Aleph juntou Shakespeare (Hamlet) e Hobbes (Leviathan).

Minha preferida? Do repertório borgesiano, nenhuma em particular. Tenho especial apreço por uma boutade de La Bruyère, com que o espanhol Enrique Vila-Matas epigrafou Bartleby e Companhia e de que me apropriei para fechar a prosa desta semana com a dose certa de sabedoria: “A glória ou o mérito de certos homens consiste em escrever bem e de outros consiste em não escrever”.

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