O GLOBO - 30/07
Uma obviedade repetida à exaustão por todos é que o nível de corrupção em nosso país é inaceitável. Até mesmo os corruptos de ofício estão cansados de tanta concorrência e da banalização do exercício de suas atividades.
Políticos recebem rotulações genéricas e, nas conversas em almoços e festinhas, são duramente criticados e execrados. Entretanto, basta um deles chegar perto de seus críticos para logo receber cumprimentos e salamaleques de todo o tipo.
Aquele que conheceu o político sai feliz, elogiando sua capacidade de negociação e perspicácia ímpar na obtenção de apoios e votos para as próximas eleições. Caso receba uma missão ou um pedido do político, cumpri-la-á com rigor e dedicação, à espera de uma recompensa que pode ser um simples elogio público.
Em 1975, logo que comecei a trabalhar, recém-formado engenheiro, fui admitido em uma multinacional do setor de telecomunicações. Talvez ninguém se lembre disso, mas na época tínhamos os serviços de telecomunicações como monopólio estatal.
O órgão regulador era a Telebrás, que planejava, especificava, adquiria e operava os equipamentos, em geral produzidos por multinacionais.
Nessa época, começava em todo mundo, quase silenciosamente, a revolução das comunicações digitais. Seu início foi pelos equipamentos que interligavam centrais telefônicas dos grandes centros urbanos, usando a modulação por código de pulsos ou, em inglês, pulse code modulation (PCM).
A Telebrás, então, encomendou várias ligações experimentais de diversos fabricantes para executar testes e escolher os de melhor desempenho. Lembro-me, até hoje, que junto com o saudoso colega Carlos Eduardo Silva Dantas participei dos testes do equipamento holandês, entre as estações Santo Amaro e Parelheiros, da então denominada Telesp.
Passados uns seis meses a Telebrás escolheu: holandeses, italianos e japoneses. Esses seriam os fabricantes e, para executar uma divisão de mercado que fosse adequada para o país, estabeleceu um edital para que as três contempladas tecnicamente apresentassem seus preços.
Como os três equipamentos tinham concepções diferentes de construção, comparar seus preços era muito difícil e a Telebrás, para normatizar a tarefa, estabeleceu como parâmetro o preço por canal instalado, o que tornava a análise independente da opção de projeto.
Começamos a trabalhar na proposta holandesa, eu e o Dantas, quando recebemos uma recomendação: façam um projeto que resulte em 30 mil cruzeiros por canal instalado. A técnica não importava. O resultado devia ser esse, nem um tostão a mais ou a menos.
Rapidamente descobrimos a razão. Os chefes holandeses, italianos e japoneses haviam chegado a um acordo para, assim, dividirem o filão igualmente, sem considerar os interesses do Brasil.
O escritório em que trabalhávamos era perto de um cinema. Saí do trabalho e, atraído pelo nome, fui assistir "Pasqualino Sete Belezas". Um filme genial de Lina Wertmüller, a primeira diretora a ganhar um Oscar, que relatava a vida de um "pulha", nascido e criado em Nápoles, que vivia à custa do trabalho de suas sete irmãs (as sete belezas).
Os episódios de humor e seriedade se alternam até que, ao desertar do exército italiano e ser capturado pelo exército alemão, Pasqualino aprende que "há um nível de dignidade inegociável". Saí do cinema com essa frase na cabeça e penso nela até hoje, como se fosse o personagem de Nélson Rodrigues, martelando a frase de Otto Lara Resende.
Não dava mais para fazer a proposta da divisão de mercado sem a sensação de falta de dignidade.
Alguns meses depois, livrei-me e fui trabalhar em um projeto interessante e de valor, cujo resultado está aí nas redes, até hoje. Minha participação foi pequena, mas a sensação de ter contribuído é muito boa.
Depois disso, ao longo de quase quarenta anos, a engenharia e o ensino conduziram-me por vários lugares e permitiram que eu convivesse com ótimos profissionais, das mais diversas áreas. Entretanto, a lição do Pasqualino nunca foi esquecida.
Educação tratada como mercadoria, tentativas de fraudar licitações, administrações públicas trocando propinas por favores, empresas de transporte falseando dados de pedágio, abandono de livros comprados com dinheiro público, perseguições gratuitas, uso indevido de recursos do Estado, enfim todos esses fatos que vão além da dignidade, parecem fazer Pasqualino corar de vergonha.
Estamos em época de eleições. Aliás, em todo lugar parece que estamos sempre em época de eleições, com servidores públicos e funcionários de empresas privadas confundindo trabalho com campanha eleitoral.
Por isso, ver a deputada federal Luísa Erundina (PSB) recusar-se a ser candidata ao cargo de vice-prefeito em São Paulo nas próximas eleições, me deixa feliz e tranquilo. Dignidade é inegociável.
Um comentário:
Acredito no profeta Mário de Andrade, quando descreveu a alma de nossa cultura em "Macunaíma, o herói sem caráter!"
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