O maestro João Carlos Martins opera o cérebro para recuperar movimentos; consciente, sentia o sangue escorrer na cabeça e gritava de dor; mas diz que, já na cirurgia, voltou a "sonhar"
"Olha aqui a cirurgia." Uma semana depois de passar por uma operação no cérebro que durou mais de nove horas, o maestro João Carlos Martins, 71, aperta o botão de um DVD Player para mostrar as imagens impressionantes do procedimento. O aparelho, na bancada de seu camarim, num auditório de SP, demora alguns segundos para carregar.
"A cirurgia!", grita ele quando as primeiras cenas aparecem. "Você vai ver que precisa ter muito amor à profissão para enfrentar isso."
As imagens mostram o maestro deitado. Uma parafernália de fios e ferros circunda a sua cabeça. "Eu tive que ficar acordado o tempo todo. E mostrando um astral legal... Olha, a anestesia! Olha!" Uma agulha entra em sua testa. "Olha a serra!" Aumenta o volume do DVD e diz que, na hora, escutava o som do aparelho abrindo um orifício em sua cabeça. "Tudo, tudo, eu escutava tudo!"
Gritava: "Ai, meu Deus! Meu Deus do Céu!". "O Paulo [Niemeyer, neurologista que comandou a cirurgia] avisava os outros: 'O sangue está escorrendo!' E eu sentia o sangue na minha cabeça."
"É agora! Atenção", diz Martins, olhos grudados na tela. A voz do médico destaca-se no barulho dos equipamentos cirúrgicos. Ele pede a Martins que abra a mão esquerda. O maestro bate os dedos no próprio corpo, simulando tocar piano. "Isso tudo com o crânio aberto, miolos aparecendo", diz, ao rever a cena. "Não é impressionante?" Na tela, gira o pulso, estica os dedos. "Eu não abria a mão havia dez anos..."
O maestro sofre de uma disfunção cerebral conhecida como "distonia do pianista", explica Niemeyer à coluna. "É algo que pode acometer, por exemplo, quem escreve muito e tem a 'cãibra do escrivão'." São contrações involuntárias que comprometem os movimentos. No caso de Martins, ela evoluiu a ponto de seu braço esquerdo quase grudar no peito. Em pouco tempo, ele poderia ser obrigado a deixar de reger.
Seria a segunda tragédia profissional de sua vida. Até 1998, Martins era pianista reconhecido internacionalmente, considerado um dos maiores intérpretes de Bach. Daí, o primeiro baque: começou a ter dores "insuportáveis" na mão direita, lesionada anos antes numa partida de futebol. "Era como uma faca entrando na minha pele." Os médicos decidiram cortar o nervo para que ele perdesse a sensibilidade. A mão atrofiou. Passou a tocar apenas com a mão esquerda.
Quatro anos depois, a distonia começou a afetar a outra mão. Em 2002, ele se despediu do piano em um concerto em Pequim. Reencontrou a música em 2004, quando passou a reger. Há alguns meses, alertado pelo maestro Julio Medaglia, percebeu que estava perdendo o movimento dos braços.
Procurou a clínica de Niemeyer. Que disse a ele que seria possível, numa cirurgia, recuperar o movimento dos braços. João Carlos Martins insistiu: "Eu pedi que ele tentasse também abrir as minhas mãos. Aí, qual é o meu sonho? É voltar a tocar piano com a mão esquerda. Mas ele não prometeu isso. Prometeu abrir o meu braço. Eu já estava com o braço aqui atrás".
Na cirurgia, realizada no Rio, Niemeyer fez um furo no crânio do maestro. Por ali, programado por um computador, um equipamento levou um eletrodo até núcleos do cérebro responsáveis pela modulação dos movimentos. O paciente precisa ficar consciente porque são feitos testes para ver se o eletrodo está bem posicionado. Se ele apresentar algum distúrbio visual ou dormência, por exemplo, é sinal de que o aparelho não está no lugar correto dentro da cabeça.
Do eletrodo partem fios que, entre o osso e a pele, descem pelo pescoço até a região peitoral. Ali, são ligados a estimuladores, como marcapassos, que inibem as cargas elétricas que provocam as contrações no braço do maestro.
Martins puxa a camiseta, mostra o lugar onde foram instalados "os chips". "Aqui. Um japonês e outro americano. Se um pifar, tem outro. Os médicos agora vão regulando toda semana, até o ideal."
"A única coisa que eu posso dizer é que o Paulo Niemeyer é um gênio. Uma pessoa com uma coragem incrível. E, fora ser um ícone, mantém 150 leitos para pessoas carentes no Rio de Janeiro. É de uma humildade, uma dedicação...", diz o maestro.
"Hoje faz uma semana que eu estou aqui de volta, regendo." Aponta para a camiseta e lê a frase estampada nela: "A música venceu".
Diz que teve medo. "Claro. Claro. Em 1966, eu regi um concerto com o apêndice supurado. Eu tinha 26 anos. Saí do palco, fui internado, tive uma embolia pulmonar e fiquei dois meses em coma. Qualquer um que já tenha vivido isso sente muito medo."
Na hora em que "estava ouvindo o barulho daquela serra cortando a minha cabeça, pensei: 'Meu Deus, o que estou fazendo aqui?'. Com 71 anos, você não tem que arriscar mais nada na vida. Mas, no momento em que minha mão abriu na operação, já comecei a sonhar: 'Vou continuar a reger. E quem sabe volto a tocar piano também'. Porque, no fundo, eu não me conformo de não poder tocar. É uma dor. É como um cadáver enterrado lá dentro".
"Eu já fiz 20 operações", diz ele. "Troco toda uma vida por um sonho. E ele está relacionado à música."
A TV Globo acompanhou cada passo da cirurgia de João Carlos Martins. Dias antes, filmaram o maestro regendo com o braço esquerdo colado ao corpo. Captaram imagens dele fazendo a barba, com a cara ensanguentada -com movimentos precários, ele se cortava involuntariamente. Registraram sua entrada na sala de cirurgia. E um médico fez imagens das nove horas da operação que depois foram entregues à emissora. Tudo vai ao ar nesta terça, no "Profissão Repórter", comandado por Caco Barcellos. O programa vai falar de superação.
"Lá em Rondônia, ninguém sabe meu nome. Mas falam: 'Olha, o cara da novela, o cara da Vai-Vai, o cara da superação", diz Martins, que em 2009 participou do encerramento de "Viver a Vida", trama das oito da Globo, e foi tema de samba-enredo da escola de samba paulista. "No aeroporto, por onde eu ando, as pessoas vêm com lágrimas nos olhos me dizer: 'Perdi meu filho e o seu exemplo me inspirou'. Ou dizem que tiveram câncer, tudo o que você pode imaginar."
O maestro diz que, agora, começa a segunda parte da "longa estrada" de sua recuperação. "A minha mão esquerda estava atrofiada. Eu tenho que fazer todo um aprendizado para usá-la de novo." Ergue uma garrafa de Fanta Laranja com o polegar e os dois primeiros dedos da mão esquerda. "É uma superação psicológica. Meu maior adversário serei eu mesmo."
Mesmo sem a garantia de que voltará a tocar, começará a estudar piano de novo, "como uma criança de seis anos". E faz planos: "Estreei como pianista aos 20 anos, no Carnegie Hall de Nova York. Eleanor Roosevelt estava na plateia". Na casa de shows, regeu a Orquestra Bachiana Filarmônica em 2008 e chorou ao ver tremularem, na plateia, duas bandeiras do Brasil. "No Carnegie Hall, eu tive as maiores emoções da minha vida. Meu sonho é viver, lá, tudo isso de novo."
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