segunda-feira, setembro 26, 2011

A razão pede socorro - REVISTA VEJA


A razão pede socorro
REVISTA VEJA


Sem o peso de normas burras que drenam a energia das empresas, o PIB per capita brasileiro poderia ser 17% mais alto. Mas, infelizmente, a burocracia sempre vence

DUDA TEIXEIRA



Imagem desta página mostra um livro de 43215 páginas com texto impresso em letras pequenas. Se uma obra desse tamanho espanta até o leitor mais empolgado, o conteúdo tamb6m não ajuda: são 18000 leis, decretos e portarias publicados entre 1988 e 2006 e que integram o aberrante sistema tributário brasileiro. O autor da compilação é o advogado mineiro Vinicios Leoncio. "Quis materializar um conceito. Apesar de sempre alardeada, a dimensão da nossa legislação tributária nunca havia sido mensurada. Agora, temos de forma visível e palpável o tamanho desse cipoal", diz Leoncio, que gastou 1 milhão de reais no projeto - um terço do valor só para pagar impostos.

Para decifrarem esse emaranhado de normas, que ganha um novo capítulo a cada 26 minutos. as grandes empresas são obrigadas a empregar centenas de especialistas. Apenas duas pessoas são o suficiente para lidar com os trâmites tributários da Gerdau nos Estados Unidos, por exemplo. No Brasil, a mesma empresa precisa de 200 funcionários. Parte do trabalho é dedicada às 91 "obrigações acessórias": os guias, formulários e livros que precisam ser preenchidos pelas pessoas ou empresas depois de pagar um tributo. "Quem deveria fiscalizar o correto pagamento dos impostos é o governo, não o consumidor", diz João Eloi Olenike, presidente do Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário (IBFT), em Curitiba.

As regras tributárias são as mais indecifráveis, mas são muitas as amarras burocráticas que minam as energias das empresas brasileiras. Nas próximas páginas há exemplos de como a legislação trabalhista desestimula a criação de empregos formais; de labirintos colocados a quem quer exportar ou importar; dos inúmeros e caros processos para regularizar uma propriedade rural; e de leis que transferem à iniciativa privada obrigações que seriam do estado. O apreço brasileiro por criar normas já foi creditado à herança ibérica. Cinco séculos depois. essa explicação não funciona mais. "Hoje somos vítimas da voracidade estatal para monitorar cada minuto da vida dos indivíduos e das empresas. Para evitar que uma minoria tente burlar o sistema, todos são submetidos a novos e estritos controles", diz o advogado João Geraldo Piquet Carneiro, presidente do Instituto Helio Beltrão, de Brasília.

O efeito devastador da burocracia na competitividade das empresas brasileiras só encontra equivalente na absurda carga de impostos. O Brasil vem perdendo posições nos dois principais rankings mundiais que medem o grau de simplificação da vida em diversos países - é o 127° na lista do Banco Mundial e o 44° na do suíço IMD. O valor anual de riqueza consumido pela burocracia brasileira é estimado em 46 bilhões de reais e equivale a 1.4% do PIB nacional. Se o Brasil atingisse o mesmo índice de burocracia do Chile ou da Espanha, por exemplo, o PIB per capita cresceria 17%. A burocracia não se comove com esses dados e só trabalha para a própria sobrevivência. Por essa razão, é inútil esperar que uma reforma burocrática nasça por iniciativa de burocratas. Como dizia o americano William Niskanen, eles inventam as regras para justificar a própria existência. No Brasil, a burocracia, em especial a que produz normas tributárias, tem uma dinâmica peculiar. Dezenas de novas normas entram em vigor a cada mês no país. tornando a gigantesca obra de Vinicios Leoncio um eternamente inacabado monumento à estupidez humana.

COM REPORTAGEM DE GABRIELA ROMÉRO, SANDRA BRASIL E TATIANA GIANINI

LABIRINTO DE LIVROS

Toda empresa brasileira é obrigada por lei a manter uma pequena biblioteca com pastas em que ficam arquivados documentos que quase nunca são consultados. Trata-se de notas fiscais de compra e venda, contratos, comprovantes de pagamentos de impostos federais, estaduais e municipais. contratos trabalhistas, rescisões, ações e decisões judiciais. Os papéis devem ser armazenados por cinco anos. Na teoria. Na prática, a exigência pode significar arquivar por dezenas de anos tudo o que, por exemplo, sirva de prova em um eventual processo judicial. "Se um funcionário que trabalhou comigo há trinta anos me processar, eu preciso estar preparado para responder", diz o empresário Alencar Burti, presidente do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) em São Paulo e dono de oito concessionárias de veículos. Por exigência legal, ele mantém dois arquivos, um na capital paulista e outro em Tatuí. Ambos somam 12000 pastas. Se fossem colocadas uma ao lado da outra, elas formariam um tapete de papel que daria dez voltas em um quarteirão.

VIAGEM BUROCRÁTICA

Quando um navio atraca em algum porto brasileiro, uma nova jornada se inicia. Antes de desembarcar a mercadoria. é preciso despachar 1 12 documentos para 28 órgãos, de catorze ministérios. Segundo um estudo feito pela Secretaria Especial de Portos, cada navio tem de prestar 935 informações distintas às entidades públicas. A piada recorrente em Santos é que, quando se abre um contêiner, saem lá de dentro mais fiscais do que mercadorias. "Não há nenhuma coordenação entre os órgãos. Tudo funciona de maneira independente", diz Wilen Manteli residente da Associação Brasileira dos Terminais Portuários. Conseguir aprovação no MINISTÉRIO DA AGRICULTURA, por exemplo. não permite pular etapas no Ministério do Trabalho. Todo o processo é regulado por 3000 atos normativos, entre leis, decretos, portarias e resoluções. A burocracia nos portos faz com que a maioria dos exportadores e importadores leve em média cinco dias para atender a todas as exigências. No porto de Roterdã, na Holanda, o tempo de espera é de apenas um dia. No Brasil, o excesso de normas não seria um problema tão grande se 95% do comércio exterior brasileiro não fosse realizado por navios. "O estado não quer abrir mão de dar o seu carimbo em tudo. E isso afeta desastrosamente a competitividade nacional", diz Manteli.

DUAS VEZES VÍTIMAS DA PIRATARIA

Uma vez por mês, a polícia paulista realiza operações para prender CDs e DVDs piratas vendidos nas calçadas. Mesmo quando os produtos são claramente falsificações grotescas ou quando o camelo fugiu a galope, comprovando o flagrante, nada pode ser destruído. Como o governo se recusa a cuidar do material, a tarefa sobra justamente para as empresas privadas que foram vítimas da pirataria. Na Zona Leste de São Paulo, um galpão é mantido pela Associação Brasileira das Empresas de Software (Abes) para guardar os produtos enquanto a Justiça não emite a ordem de destruição, o que costuma demorar três anos. Há 2 milhões de CDs de softwares e 20 milh0es de discos com música e filmes estocados no local. "Tem CD que chegou ao armazém há onze anos e jamais rodaria em um PC atu diretor jurídico da Abes. Para que os produtos sejam analisados por um perito, a Abes envia uma amostra do material apreendido. Contudo, alguns promotores exigem que todos os CDs sejam avaliados, um a um, o que inviabiliza o processo. As despesas com o galpão são divididas entre as vítimas da pirataria.

PERDIDO ENTRE MAPAS

Regularizar uma propriedade rural é uma maratona cujos desafios são inimagináveis. Para legalizar uma fazenda de 1000 hectares, por exemplo, o Instituto Nacional da Colonização e Reforma Agrária (Incra) exige o georreferenciamento do imóvel, que inclui um relatório técnico com a localização de rios, córregos e áreas de preservação, um . mapa, um memorial descritivo, uma planta com assinatura do engenheiro responsável, uma fotografia aérea e um levantamento topográfico. Pedem-se documentos pessoais, a cópia da matrícula dos imóveis e uma declaração dos vizinhos dizendo estarem de acordo. Além da burocracia, há a corrupção. Os fazendeiros paulistas denunciam que, se não pagarem 50000 reais por fora, o georreferenciamento não é aprovado nunca. Oficialmente, obter toda a papelada pode custar, por baixo, 60000 reais. Para um pequeno proprietário, deveria ser menos penoso - mas é ainda pior. O custo da regularização fundiária de uma pequena propriedade chega a representar 70% do gasto anual com mão de obra. "É um processo que, tudo correndo bem, pode levar entre dois e quatro anos", explica o advogado Paulo Junqueira, especializado em direito agrário e ambiental. Pode ser mais lento ainda. "Em Cuiabá, estou trabalhando em um processo que está há dez anos perdido na burocracia administrativa."

O TORMENTO DE ABRIR UMA EMPRESA...

Os obstáculos impostos aos brasileiros para momar uma empresa levam 120 dias no Brasil para ser vencidos - vinte vezes o tempo gasto nos Estados Unidos. Para abrir uma nova firma por aqui. são necessários quinze procedimentos que tramitam em quinze órgãos. entre eles Receita Federal, Previdência Social, prefeitura e secretarias de meio ambiente. Em contraste, no Canadá e na Nova Zelândia o processo requer um único procedimento. O custo de abertura de empresas no Brasil é de 2038 reais, contra 1 213 reais na Colômbia e 280 reais na China. O pior inimigo do Brasil não faria maior dano a nossa economia.

...E A ODISSEIA PARA FECHÁ-LA

No Brasil, gastam-se quatro anos para fechar uma empresa. Na Irlanda. quatro meses. O estado brasileiro exige documentos que comprovem ausência de pendências fiscais, trabalhistas, tributárias e legais que devem ser entregues. um a um, nas receitas federal, estadual e municipal. Alguns desses documentos podem ser obtidos pela internet. Antes, porém, era preciso ir pessoalmente às repartições. Nos anos em que a.empresa permanece aberta, a papelada cresce. Enquanto espera para fechá-la,o empresário precisa prestar oito declarações, como o recolhimento de INSS de funcionários (já desligados), e enviar relatórios aos sindicatos.

GOLPE FATAL NOS EMPREENDEDORES

São cobrados no Brasil 63 tributos nas esferas federal, estadual e municipal. Somem-se a eles as normas e portarias, e o heroísmo do empreendedor brasileiro começa a ficar claro. O excesso de impostos mina a energia das empresas, torna um martírio a tarefa de pagá-los e desvia o foco dos brasileiros donos do próprio negócio. A burocracia brasileira consome 2600 horas de trabalho por ano - catorze vezes o tempo dedicado a ela pelos americanos (187 horas) e 21 vezes o dos suecos (122 horas). Das taxas pagas pelos empreendedores, só o ICMS tem 27 legislações - uma para cada estado. Esse imposto, que tributa a circulação de mercadorias, é o de maior impacto negativo na competitividade das empresas. A tributação sobre a folha de pagamentos é um estímulo à informalidade - eufemismo para ilegalidade. Os empresários brasileiros pagam tributos equivalentes a 70% do lucro obtido nos negócios - outro absurdo recorde mundial.

PIONEIRO DA DESBUROCRATIZAÇÃO

As primeiras reformas administrativas sérias para reduzir a burocracia brasileira começaram com um decreto de 1968, de autoria do advogado Helio Beltrão, que dispensava a firma reconhecida para quem assinasse documentos na presença de um funcionário público. Uma década depois, Beltrão comandou o Ministério da Desburocratização, criado durante o governo militar de João Figueiredo (1979-1985). Sua proposta era "retirar o usuário da condição colonial de súdito para investi-lo na de cidadão, destinatário de toda a atividade do estado". Apesar do folclore (criar um órgão não parece o melhor meio para reduzir"a burocracia), a iniciativa de Beltrão deu frutos. Ele formulou um estatuto para facilitar os trâmites para microemprsas e criou juiza dos de pequenas causas. Cinco anos depois, seu ministério foi fechado. Muitos dos obstáculos eliminados por ele foram teimosamente recriados mais tarde entre eles a exigência de firma reconhecida. O Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado tentou retomar o ímpeto simplificador de Beltrão em 1995, mas fechou quatro anos depois sem sucessos a relatar. Em 2003, o Ministério do Planejamento montou uma equipe só para estudar medidas desburocratizantes. Disputas políticas com a Casa Civil do ex-ministro José Dirceu mataram o projeto.

As iniciativas para reduzir a burocracia estatal fracassam porque, pela própria natureza de seu trabalho, os funcionários não têm incentivos para levá-Ias adiante. "Isso se explica pela teoria da falha sequencial, segundo a qual, enquanto no setor privado as gestões ineficientes não prosperam, na área pública elas se perpetuam, independentemente de funcionarem ou não", diz Flávio da Cunha Rezende, cientista político da Universidade Federal de Pernambuco.

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