segunda-feira, setembro 05, 2011

MARCELO DE PAIVA ABREU - Limpando as estrebarias

Limpando as estrebarias
MARCELO DE PAIVA ABREU
O Estado de S.Paulo - 05/09/11
O combate à corrupção no Brasil depende de renovação dos partidos políticos
Têm sido curiosas as reações às iniciativas da presidente da República que resultaram no afastamento de funcionários públicos envolvidos em irregularidades, especialmente no Ministério dos Transportes. Ganhou força a ideia de que a presidente poderia estar empenhada numa "faxina", tratando de limpar a verdadeira estrebaria de Augias que herdou do presidente Lula. Os leitores de Monteiro Lobato lembrarão que, na mitologia grega, o quinto trabalho de Hércules foi limpar as estrebarias do rei, dono dos mais belos rebanhos do país, que deixava que o esterco se acumulasse gerando gases tóxicos.

Os limites de tal "faxina", no quadro da coalizão fisiológica que assegura o apoio ao governo Dilma Rousseff, são naturalmente dados por pedestre cálculo político do qual são ingredientes principais o apoio ao governo no Congresso Nacional e a remuneração dos interesses especiais lá representados. Não foi por acaso que a "faxina" não tenha ido tão longe quanto seria desejável, sob pena de abalar a grande coalizão fisiológica que controla a vida política do País. As demissões devem ser explicadas com base nas peculiaridades de estilo pessoal da presidente, e não a qualquer reorientação estratégica.

O episódio sugere que o combate à corrupção continua a ser pilar importante em eventual plataforma política capaz de granjear significativa popularidade. Terreno perigoso, vulnerável à exploração demagógica, como mostra a história relativamente recente em que a propalada caça a marajás acabou em impeachment do presidente da República. Por outro lado, tornou-se reação-padrão dos acusados de improbidade a denúncia de "udenismo", em tentativa meio pífia de confundir a legítima ênfase da velha UDN no combate à corrupção com o seu contumaz golpismo durante a Terceira República.

O episódio também suscita reflexão sobre se, quando e como poderá haver salto qualitativo na repressão às práticas corruptas no Brasil. Não custa lembrar a mudança de regime que significou o episódio do mensalão, em 2005. Até então o PT se apresentava como partido renovador, uma espécie de Partido Comunista Italiano, cuja gestão da coisa pública em nível municipal contrastava com o fisiologismo de outros partidos. Pós-mensalão, o que se viu foi o PT abandonar o seu projeto inovador e mergulhar na fisiologia, tratando de dominar a tecnologia das coalizões perversas baseadas no "é dando que se recebe". Nesse ambiente prosperou a veia personalista do ex-presidente e o lulismo acabou por dominar amplamente o petismo.

A Grã-Bretanha é o exemplo histórico mais conhecido de sociedade que, no início do século 19, abandonou a "velha corrupção" e começou a desmantelar a corrupção sistemática que havia caracterizado o período anterior. Corrupção baseada na coalizão entre políticos que se perpetuavam no poder distribuindo benesses para "interesses especiais" e os próprios interesses beneficiados. Em meio à ampliação da representatividade do colégio eleitoral, reformas acabaram com sinecuras, venda de cargos, distribuição de contratos, cargos e pensões a parentes e amigos, e também com os "burgos podres". Políticas públicas centradas na defesa de "interesses especiais", em detrimento do interesse coletivo, foram reformuladas. Para que isso fosse possível foi importante o sentimento entre os beneficiados pela patronagem anterior de que melhor seria perder os anéis que arriscar a perda dos dedos, ainda com a experiência da Revolução Francesa viva na memória. E, também, que o projeto passasse a fazer parte das plataformas dos grupos políticos em ascensão.

Para que o abandono da "velha corrupção" seja possível no Brasil, seria necessário que tal objetivo fosse efetivamente incorporado ao programa de partidos. E que estes disputassem as eleições defendendo tal plataforma. O que forçaria o abandono de políticas que beneficiam "interesses especiais" em detrimento do interesse coletivo, que vão do acesso a crédito subsidiado por bancos públicos até a provisão de educação universitária gratuita independentemente da renda familiar dos estudantes, passando pelos privilégios das aposentadorias do setor público, entre muitas outras anomalias distributivas.

É difícil que isso ocorra. Parece impossível que as correntes do PT que repudiam a alternativa fisiológica tenham condições de reverter a contaminação do partido pelo gosto do poder a qualquer custo. Dilma Rousseff não tem cacife político para mudar os rumos do PT, encalhado na fisiologia. Lula, como presidente-sombra e candidato perpétuo, não parece ter nenhuma inquietação quanto à mudança de rumos de 2005. Caso houvesse oposição minimamente estruturada, e com projeto efetivamente renovador, seria possível, em tese, pensar em redefinição da coalizão governista que criasse "valores republicanos" efetivos, decentes e críveis. Cenário que está, também, por enquanto, fora de cogitação.

O mais provável é que a forma de governar da atual presidente continue a ser balizada pelo modelo lulista pós-2005, com o uso bissexto de mero pano de pó para controlar as irregularidades mais incômodas politicamente. Faxina jamais, pois comprometeria o cimento da coalizão governista.

DOUTOR EM ECONOMIA PELA UNIVERSIDADE DE CAMBRIDGE, É PROFESSOR TITULAR NO DEPARTAMENTO DE ECONOMIA DA PUC-RIO


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