Dilma pode fazer um bom governo
ARNALDO JABOR
O Estado de S.Paulo - 20/09/11
Quando Dilma era candidata, eu ataquei-a como 'clone do Lula', que estava ali apenas para esquentar a cadeira até 2014. Cheguei a escrever: "Coitada da Dilma - sendo empurrada, com resignação militante, para cumprir tarefas, como os tarefeiros rasos que pichavam muros ou distribuíam panfletos. Dilma me dá a impressão de que prefere o sossego e que não quer governar".
Não era isso. Assim que foi eleita, Dilma mostrou traços de uma personalidade com bom senso e bom gosto. Tinha dado um livro de poesias de Adélia Prado para uma amiga, disse numa entrevista que estava lendo Cecília Meirelles e que gostava muito do filme Casablanca - o que também me animou. Depois, soube que ela não tinha aguentado um livro do Carlos Fuentes (que também acho um chato de galochas), sem contar o 'chega para lá' que deu no assassino Armadinejad do Irã.
Conheci várias 'dilmas' como estudante, na UNE - 'pequenas burguesas' corajosas, idealistas e informadas, querendo bem ao Brasil. Eleita, Dilma convocou mulheres obstinadas que demonstram um 'élan' verdadeiro para melhorar o País e que começaram a 'faxina', sem esfregão e pano de chão, uma faxina delicada, trabalhosa, para fechar o buraco negro de alianças que Sr. Luis Bonaparte da Silva deixou de herança maldita.
O governo anterior (que a pariu, sem dúvida) tinha criado uma sopa sem sal, uma cobra mordendo o próprio rabo, um círculo vicioso, um 'nada' depressivo. Todos os delitos e desmandos sempre foram absolvidos pela força carismática do ator Lula, pela mídia oficial (bilhões em propaganda) e pela credulidade abobalhada de pobres sem cultura e 'militantes imaginários'. Vivíamos o que Mario Henrique Simonsen apelidou de "país sob anestesia, mas sem cirurgia". Vivíamos uma época sem acontecimentos reais, sob a aparência de grande agitação, que Lula bem sabia aferventar com discursos indignados e autoelogios.
Lula, de boné, dançando o forró do "nunca antes", nos convencia de que algo se movia, quando tudo estava congelado.
Os escândalos pareciam acontecimentos. E isso gerou um caos morno, porque o caos não é uma zona agitada - é um vazio sem horizontes. E no caos não há eventos. Para haver 'acontecimentos', é preciso alguma 'normalidade' a ser rompida.
Tudo que acontecia se coagulava, coalhava como uma pasta, um brejo de não acontecimentos. A anormalidade ficara "normal" e os escândalos foram desmoralizados. Nosso presente enguiçado já se desenhava no ar, para pavor dos entendidos: estouro das contas públicas, obras de pacotilha, empreguismo, velhas ideologias e terceiro-mundismo ridículo. Lula inventou a 'ingovernabilidade' e só hoje podemos avaliar a extensão do desastre.
A corrupção evoluiu como um novo partido político - uma 'pós-corrupção' sem disfarces, com a chantagem viva, usada como alavanca de apoio. A velha esquerda virou uma espécie de 'direita', apoiada por intelectuais que ainda sonham com um socialismo ilusório que resolva nosso bode "capitalista", quando justamente o 'injusto capitalismo' seria a única dinamite capaz de arrebentar esse patrimonialismo de pedra. As reformas necessárias foram ignoradas, detidas pela resistência suja dos velhos donos do poder e dos 'revolucionários' que acham 'reforma' coisa de 'pequeno-burguês'. Assim, continuamos sob o domínio do ferro velho mental do País, de oligarquias felizes e impunes, de um Judiciário caquético, das notas frias, da boçalidade dos discursos, dos superfaturamentos - tudo compondo uma torta escultura de detritos de vergonhas passadas, infraestrutura podre, analfabetismo funcional e irresponsabilidade fiscal. Nas notícias de jornal, só havia um mesmo assunto: as coisas que 'não' aconteceram - 'não' termina a greve, 'não' puniram os responsáveis, 'não' conseguiram isso, nem aquilo. Nossas notícias são narrativas de fracassos.
O Brasil continua esmagado pelos 'desacontecimentos'.
No entanto, no estreito espaço deixado por Lula, nas frestas das impossibilidades políticas, Dilma e suas assessoras vão criando fatos concretos, desejos realizados ou em fase de realização. A estrutura de impasses e encrencas está mais fraturada. E isso já é muito, em um país tomado pela direita corrupta e pela neodireita petista, sob os olhos de uma oposição patética. Há quanto tempo esperávamos por isso: fatos. Só tínhamos falsos eventos. Dilma está criando acontecimentos. Sua maior virtude é pautar-se por convicções de uma ética pessoal e não apenas por estratégias políticas ou oblíquas intenções. Ela passa uma sinceridade (certa ou errada) e tenta governar como pensa, e não como querem que pense. Uma mulher que conheceu a solidão da tortura é muito superior ao vagabundo esquerdismo de pelegos e intelectuais em seus feudos teóricos. É inacreditável que estejamos animados apenas porque o Executivo está tentando 'executar' - a que ponto chegamos...
Dilma fala o que pensa, atenta à necessidade de co-habitar com aliados, mas sem o desbragamento voluptuoso de tudo topar para não se aporrinhar. Dilma tenta diminuir gastos públicos que Lula escancarou. Dilma está protegendo os fundamentos da economia que FHC deixou e não se aproximou dele ou de Alckmin por necessidade estratégica, mas por um dever de justiça. Dilma está dando os primeiros passos para uma co-habitação com o PSDB, que Lula evitou sempre, movido por seu primitivismo invejoso e pautado pelo que Dirceu decretou: 'não se aproximar jamais do PSDB'. Por que não? Por que não levar adiante reformas iniciadas e necessárias? Ainda estamos no início de seu mandato, mas, se Dilma continuar afirmando suas convicções sensatas e modernas, talvez faça um grande governo.
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