Manicômio tributário
CLÓVIS PANZARINI
O Estado de S.Paulo - 17/06/11
Com o recomeço do fastidioso debate sobre reforma tributária, o contribuinte deve "pôr as barbas de molho", pois não é improvável que isso "acabe em CPMF". Desde Itamar Franco, todo governo que se inicia tem um projeto de reforma tributária. A primeira, pós-Constituição de 1988, foi implementada pela Emenda Constitucional (EC) n.º 3/93, e a principal novidade foi a instituição de um imposto sobre movimentação financeira, o "imposto do cheque", mais tarde convertido em Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF). O primeiro governo FHC também fez sua "reforma tributária". O debate à época começou com a Proposta de Emenda Constitucional n.º 175/95, que previa profundas mudanças na tributação indireta, mas encolheu na EC n.º 12/96, que converteu o "imposto do cheque" em CPMF, com alíquota máxima de 0,25%. O debate sobre reforma tributária perpassou todo o segundo período FHC e resultou em mais duas "reformas": a primeira (EC n.º 21/1999) prorrogou a CPMF e elevou sua alíquota máxima para 0,38% e, a segunda (EC n.º 37/2002), estendeu a vigência da CPMF até dezembro de 2003. O governo Lula também tentou uma reforma, que resultou na EC n.º 42/2003, que prorrogou até dezembro de 2007... a CPMF!
Retoma-se agora o debate e está sendo proposta uma reforma tributária "fatiada". No caso do ICMS, calcanhar de Aquiles do sistema tributário, propõe-se a eliminação ou redução da alíquota interestadual para mitigar a guerra fiscal, que, além de gerar enorme insegurança jurídica, quebra um princípio fundamental de tributação - o da isonomia -, impondo custos tributários diferentes a mercadorias idênticas que concorrem no mesmo mercado. Ademais, a guerra fiscal acaba gerando situações tragicômicas, como a que induziu o governo paulista a reduzir para 7% o ICMS incidente sobre embarcações de esporte e lazer fabricadas em seu território. Remédios, em São Paulo, pagam 18% de ICMS, enquanto iates pagam 7%!
Essa disputa entre Estados, que no primeiro momento se cingia à atração de investimentos industriais, derivou, depois, para concessões de benefícios ao comércio atacadista, buscando-se não mais a expansão do emprego, mas somente o passeio de mercadorias - quando não, apenas de documentos fiscais. Esses paraísos fiscais atraem centros de distribuição para seus territórios e ganham a diferença entre a alíquota interestadual de ICMS de chegada da mercadoria (7%) e a de saída (12%). Esses cinco pontos porcentuais - que representam perda do Estado remetente - são partilhados, geralmente na proporção 20/80, entre o Estado guerreiro e a empresa atacadista aliciada para o estratagema. Agora, em atitude que deveria ser considerada crime de lesa-pátria, alguns Estados estão concedendo benefícios de ICMS a bens importados, que concorrem com vantagem tributária com os produzidos no Brasil, o que vem sendo chamado de "guerra dos portos". Mais adequado seria chamar de "pirataria fiscal". Essa farra tributária assentada no ICMS - obviamente ilegal, pois desobedece à norma nacional que rege a concessão desses benefícios - só é viável porque o ICMS incide sobre operações interestaduais. A alíquota interestadual de ICMS é um "dinheiroduto" que transfere recursos do Tesouro do Estado destinatário para o do remetente da mercadoria, pois o valor do ICMS cobrado na origem, pelo Estado remetente, é integralmente devolvido pelo Estado destinatário ao comprador interestadual, dentro da lógica de débito/crédito que o rege.
É claro que, ao adotar o princípio de destino do ICMS eliminando-se essa tributação interestadual, desaparece o combustível que move a guerra fiscal e, então, cada Estado passaria a tributar exclusivamente o consumo em seu território. Mas a tarefa não é trivial, pois, além de promover formidável redistribuição de receita, resulta em sérios problemas operacionais, como o agravamento do já grave problema de acúmulo de crédito do imposto: cada venda interestadual terá efeito idêntico ao de uma exportação na conta fiscal do contribuinte. Com esse histórico, uma hipótese a ser considerada é que a "reforma tributária" se resuma na recriação da CPMF.
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