A Ficha Limpa é nossa
WALTER CENEVIVA
FOLHA DE SÃO PAULO - 02/04/11
O direito contra a ficha suja é dos cidadãos brasileiros, não só dos que lutaram para obter a lei, mas de todos
NÃO ESTRANHE o título: destina-se a chamar a atenção do leitor para uma circunstância talvez despercebida nas discussões sobre a vigência da chamada Lei da Ficha Limpa.
O Congresso tem competência exclusiva para, em outro lance de esperteza política, aprovar emenda constitucional que impeça novamente o STF (Supremo Tribunal Federal) de proibir a participação de culpados de condutas condenáveis, assim permitindo sua reapresentação como candidatos.
Esse é o motivo para reexaminar decisões do STF na questão dos antecedentes do candidato. Penso que o direito à ficha limpa não é dos políticos. É deles o dever da ficha limpa. O direito contra a ficha suja é dos cidadãos brasileiros, não só dos que se mobilizaram para conseguir a lei, mas de todos. Todos os que cometeram crimes para o escândalo de votos distorcidos hão de ser punidos.
Entre os argumentos alinhados nas discussões do STF, um foi enfocado reiteradamente, o da necessária anterioridade no tempo de lei que mude o processo eleitoral. Outra razão, menos técnica, disse respeito ao fato de que, depois de muito se esperar pelo undécimo ministro para o STF, o resultado final, na sessão recente, teve diferença de um voto. Foram reincluídos candidatos com crimes em seu histórico.
O resultado, porém, se vinculou à mesma e fundamental origem: a atribuição ao STF para decidir, em último grau, todas as questões constitucionais por maioria. Plena ou restrita.
São claras a letra e a intenção no art. 102 da Carta: "Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição". O dispositivo alinha longa lista de competências da Suprema Corte, no seu caput e nos três incisos e três parágrafos. Desde 1988, há milhares de votos dos ministros ao examinarem o art. 102.
A essência da interpretação da norma pode ser encontrada especialmente em acórdãos do ministro Celso de Mello. Tomo duas frases essenciais e exemplares do pensamento desse julgador, em anos diversos. Diz a primeira que "a autoridade hierárquico-normativa da Constituição da República impõe-se a todos os Poderes do Estado".
Está na segunda: "A competência do STF -cujos fundamentos repousam na Constituição da República- submete-se a regime de direito estrito". Impossível maior clareza.
O advérbio de modo "precipuamente", no art. 102, vem do adjetivo "precípuo", isto é, principal.
O substantivo "guarda" e o verbo "guardar" chegaram às línguas latinas há muitos séculos. Sempre a dizer que guardar tem em vista do objeto guardado (a Constituição). De origem remota, no francônio germânico (na parte hoje ocupada pela Baviera) surgia com "wardon" ou "warten", no sentido de preservar.
Tudo a afirmar a aplicação do art. 16 da Carta Magna, com a redação da EC nº 4/ 2003, para a antecedência da lei.
Há sempre a possibilidade de opiniões eruditas em sentido contrário, mas, visto o retrospecto da Corte, a orientação predominante impõe um ano de espera para vigência de nova regra eleitoral.
O STF certamente estará prevenido contra a "esperteza legislativa" referida segunda-feira por Janio de Freitas ao tratar de "artimanhas pela corrupção". A Ficha Limpa é nossa. De todos. Devemos defendê-la para reforçar nossa democracia.
2 comentários:
"Noves fora" o povo foi enganado pela mídia, acreditando que, como e lei é boa a causa é justa, é possível atropelar a constituição fazendo uma lei eleitoral vigorar no mesmo ano em que foi promulgada.
Ela estara em pleno vigor em 2012.
De resto foi uma grande "pataquada"
da mídia, de alguns juristas e políticos de má fé.
Fichinha
A correta decisão do STF de adiar a vigência da chamada Lei da Ficha Limpa suscitou muitas análises distorcidas. Como alguém pode afirmar, por exemplo, que uma legislação destinada a impugnar candidaturas não altera as regras eleitorais em curso?
A tal Ficha Limpa deveria ter sido banida no primeiro momento, antes de virar essa panacéia mitológica fadada ao limbo jurídico. Ainda que não fosse pelo escancarado vício retroativo, que viola um importante princípio constitucional, sempre foi evidente que o instrumento serviria para perseguições políticas e golpes eleitorais. Em nome de punições temporárias e inócuas a bandidos que sequer precisam de cargos para praticar suas malvadezas, toleramos as injustiças cometidas contra dezenas de Capiberibes probos, eleitos democraticamente.
Aqueles que reclamam da indiferença do Judiciário aos apelos da “opinião pública” (leia-se “grandes veículos de comunicação”) pregam a ingerência de empresas privadas sobre as decisões das cortes. O limite dessa pressão é o autoritarismo puro e simples, já evidente na pretensão a retirar do eleitor a capacidade de eleger seus escolhidos, inclusive aqueles que são reconhecidos canalhas.
Nesses momentos de histeria moralista, perdemos a chance de discutir assuntos verdadeiramente importantes. Reforma política de verdade ninguém quer, não é mesmo?
http://guilhermescalzilli.blogspot.com/
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