sábado, abril 16, 2011

KÁTIA ABREU - Tenha a tua obra!


Tenha a tua obra! 
KÁTIA ABREU

FOLHA DE SÃO PAULO - 16/04/11

A única demanda justa é adaptar as demandas dos tempos e da sociedade ao direito do autor à sua obra 


SEMPRE QUE, num regime democrático, grupos de pressão tentam criar uma contradição entre direitos individuais e direitos coletivos -prática que, infelizmente, tem encontrado abrigo até nas nossas cortes- os indivíduos saem perdendo, as garantias fundamentais acabam arranhadas e triunfam os promotores de ilegalidades, que, sob o pretexto de falar em defesa dos interesses do povo, defendem, na verdade, seus próprios interesses. Isso que se verifica na luta política diária também vale para os direitos autorais.
Alinho-me com a preocupação de artistas, autores e produtores de conteúdo de modo geral que entendem estar em curso uma relativização dos direitos de autor no Brasil. Lamento constatar que o debate encaminhado por Juca Ferreira, ex-ministro da Cultura, que propôs a revisão da lei 9.610/98, não foi exatamente um debate, pois alijou a esmagadora maioria dos interessados: os criadores!
Essa, aliás, é outra prática que precisa acabar no país: agentes do Estado têm as suas ideias, o que é legítimo, testam a sua validade apenas com as pessoas de seu grupo político ou de sua base de apoio e proclamam, em seguida, que falam em nome da sociedade. Isso não é legítimo! Foi assim que se fizeram algumas conferências no governo passado, que contavam com a adesão dos... conferencistas!
O direito de autor está assegurado no inciso 27 do artigo 5º da Constituição. Inclui-se entre as cláusulas pétreas, que não podem ser alteradas. Não será uma lei, com seus dispositivos oblíquos, a cassar uma prerrogativa fundamental dos brasileiros. Aos autores pertence o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras.
Não há lei menor que possa relativizar o que assegura a Lei Maior. A ministra da Cultura, Ana de Hollanda, que fez bem em propor uma nova rodada de debates sobre o tema, afirmou numa entrevista que os direitos autorais são similares aos direitos trabalhistas. Parece-me que se trata de uma prerrogativa de outra matriz, que não deriva de uma relação entre patrões e empregados. Fala-se aqui em autonomia do indivíduo.
Entendo que o direito autoral pertence à categoria dos direitos de propriedade, e o mais sagrado deles está na raiz das democracias contemporâneas: o direito que temos à propriedade do nosso corpo -o habeas corpus. Não por acaso, um e outro, o habeas corpus e o direito autoral, estão contemplados no mesmo artigo 5º da Constituição.
Noto que o debate anda sendo pautado por falsas clivagens, todas elas destinadas a subtrair do autor a prerrogativa de decidir sobre a sua obra, a relativizar, em suma, o que é um direito de propriedade. Querem alguns que se trata de um confronto entre o arcaico e o moderno; nessa perspectiva, o princípio que protege a autoria seria um dinossauro herdado dos tempos pré-internet, como se a facilidade em agredir um direito mudasse a moralidade da agressão.
Não muda!
Pretendem outros que se assiste ao choque entre os interesses mais amplos da sociedade -como o acesso à cultura e a difusão do conhecimento- e os direitos exclusivos do autor, um bem, tenho notado, que é tratado até com certa hostilidade, como se o dono legítimo de uma obra padecesse de um atroz egoísmo e não estivesse disposto, por alguma maldade congênita ou rancor social, a dividir o que naturalmente pertence à coletividade.
São categorias artificiais e externas ao debate essencial. O eixo da questão precisa ser mudado para atender ao que dispõe a Constituição. Não se trata de compatibilizar extremos, como se houvesse um meio-termo entre o direito autoral e o interesse social, entre a preservação do copyright e a divulgação gratuita da obra pelos novos meios de reprodução.
O meio-termo será sempre um lugar falso quando os extremos são também falsificados. Nessa perspectiva, os autores já estariam abrindo mão de parte de suas prerrogativas. A única demanda justa, ética e, destaco, constitucional está em adaptar as demandas dos tempos e da sociedade ao direito do autor à sua obra, que é intocável. 

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