Distritinho e distritão
GAUDÊNCIO TORQUATO
O ESTADO DE SÃO PAULO - 27/02/11
Ponto um: nos termos do parágrafo único do artigo 1.º da Constituição, "todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição".
Ponto dois: nos termos dos artigos 45 e 46 da Constituição Federal, os deputados federais representam o povo e os senadores representam os Estados e o Distrito Federal. Ponto três: os deputados são eleitos pelo sistema proporcional e os senadores, pelo sistema majoritário.
Ponto quatro: se o povo vota em um candidato e este, com sua bagagem de votos, leva para o Parlamento mais dois ou três de contrabando, esses excedentes ferem o princípio constitucional alinhavado no primeiro item.
Ponto cinco: a representação popular, para ganhar respeito e legitimidade, deve se submeter a uma radiografia moral a fim de se conformar aos ditames constitucionais.
Ponto seis: o exercício do poder em nome do povo é tese ancorada na hipótese de escolha dos eleitos de acordo com o preenchimento das vagas que cabem a cada Estado. Ponto sete: essa hipótese abriga o voto majoritário, que, adotado na escolha dos representantes do povo, acabaria com a excrescência gerada por coligações proporcionais, pela qual o eleitor vota em um candidato e, alheio à sua vontade, elege mais um, dois ou até mais de três.
Dito isso, vale perguntar: que vertentes abrigam o voto majoritário? Neste início de debate sobre reforma política, que Senado e Câmara começam a debater sob a égide de comissões específicas, duas propostas se sobressaem por privilegiar o voto majoritário: os sistemas conhecidos como "distritinho" e "distritão". O primeiro, que tem como um de seus defensores o governador paulista, Geraldo Alckmin, se assenta na ideia de escolha dos representantes a partir de distritos, pelo critério dos mais votados, abolindo-se as coligações partidárias. Teria como finalidade estabelecer ligação mais estreita entre o parlamentar e as regiões. A representação popular seria escolhida exclusivamente por este critério - o voto distrital puro -, abolindo-se, dessa forma, o voto em lista partidária.
Pelo segundo sistema, o "distritão", cujo maior defensor é o vice-presidente da República, Michel Temer, seriam eleitos os mais votados até o limite das vagas por Estado. Esse método eliminaria também a distorção de eleição de pessoas sem votos suficientes para representar o povo. Nesse caso, o distrito seria o próprio Estado (distritão), diferente da proposta anterior, de repartir o ente federativo em unidades distritais em conformidade com suas densidades eleitorais.
Entre as duas propostas, qual a mais condizente com o preceito constitucional? O "distritão" parece mais afinado à letra normativa. O Estado como distrito e circunscrição eleitoral, nos termos propostos por Temer, se ajusta melhor ao modelo de representação do povo brasileiro, esteja ele em São Paulo ou no Acre. O deputado é a voz do povo no Parlamento. Já a concepção do "distritinho", nos termos apregoados por Alckmin, aponta para a identificação do parlamentar com a localidade, a espacialidade, características próximas da representação senatorial. O senador é a voz do Estado no Parlamento. Ademais, o poder econômico é mais forte em regiões restritas. É aí que predomina a força dos cabos eleitorais. É aí que se flagra o "voto de cabresto", diferente do voto de opinião, racional e crítico, que emerge no seio dos conjuntos mais avançados politicamente.
O argumento de que o voto majoritário enfraquece os partidos é sofisma. Para começo de conversa, o que seria melhor para vivificar a política: 28 siglas amorfas ou 10 partidos com ideários fortes e claros? A massa pasteurizada da política é produzida pelos laboratórios de conveniências da estrutura partidária. Dizer que as campanhas, hoje, são realizadas em nome dos partidos é faltar com a verdade. Hoje, vota-se no perfil individual, não no partido. As campanhas são fulanizadas. Todos os entes - com exceção de uma ou outra sigla do extremo ideológico - bebem em fontes incolores, insossas e inodoras.
O que ocorreria com a adoção do voto majoritário e consequente eliminação das coligações proporcionais seria a integração/fusão de partidos. A busca de maior força e densidade propiciaria natural integração de parceiros, principalmente de pares com identificação histórica ou parentesco ideológico.
É improvável que os partidos, no afã de obter grande votação, passem a compor suas chapas com demagogos, populistas, celebridades e famosos. Uma plêiade de olimpianos (perfis que habitam o Olimpo da cultura de massa) tenderia a se isolar.
Fora de seu hábitat, sem vocação e motivação, acabariam sendo objeto de muita crítica. Após a fosforescência inicial, os pequenos "deuses" desceriam à terra dos mortais, tornando-se figuras banais, até porque não contariam mais com agasalho midiático. O que será de Tiririca sem o chapéu de palhaço no circo da mídia? A vida útil de uma celebridade, sem a luz do farol, é curta. Não se deve esquecer, ainda, de que o País, a cada ciclo histórico, avança na estrada civilizatória. Haverá um momento em que o eleitor, mais racional, exigirá que cada macaco permaneça em seu galho.
Quanto ao voto em lista fechada - visto por alguns como eixo de fortalecimento dos partidos -, são evidentes as consequências perversas que gera, ao conferir excessivo poder aos caciques partidários. Estes formariam as listas posicionando os nomes de acordo com suas conveniências.
Cada sistema de sufrágio, como se pode aduzir, comporta prós e contras, alguns mais que outros, mas o critério de escolha pela via do voto majoritário, e atendendo ao preceito da escolha dos mais votados, parece, seguramente, o mais adequado. Para o eleitor, tal método se apresenta ainda como o mais lógico e de fácil compreensão. Começar o debate sobre reforma política pelo sistema de voto é, portanto, a mais auspiciosa notícia da estação.
JORNALISTA, É PROFESSOR TITULAR DA USP E CONSULTOR POLÍTICO E DE COMUNICAÇÃO
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