A guerra que não vai acabar
João Ubaldo Ribeiro
O Estado de S.Paulo - 05/12/10
Ao que parece, o ser humano (quase escrevo "serumano", neologismo que, quem sabe, pode vir a ser adotado, pois outro dia ouvi na TV que um casal era "dois serumanos") precisa, pelo menos de vez em quando, alterar sua percepção da chamada realidade, mexer com a própria mente e as emoções. Prisioneiro de seus cinco limitadíssimos sentidos, não consegue perceber, em condições normais, aquilo que suspeita ou sabe existir além deles. E quer sair da prisão, quer sensações que ordinariamente não estão a seu alcance. Outra necessidade, que corre paralela, é alterar o comportamento habitual e quem for tímido tornar-se extrovertido, quem for melancólico tornar-se alegre, a moça que hesita em dar resolver dar e assim por diante.
Para obter esses estados alterados de percepção e comportamento, o famoso ser humano não usa somente drogas. Muitos lhes devotam aversão ou medo e recorrem a vias diferentes. Se forem poetas, poetam; se não forem, embarcam na poesia pelas mãos dos poetas. Ou veem o mundo pelos olhos dos pintores e fotógrafos. Ou meditam, ou contemplam a natureza, ou ouvem música, esta última considerada por alguns tão potente que Platão, por exemplo, a baniu de sua República. Aliás, não falta quem condene a música, ou certos tipos de música, por crer que ela induz à depravação e à expressão de temíveis baixos instintos. E, como as experiências com esses alteradores da consciência não são excludentes entre si, o ser humano desfruta de várias delas, entrando no que se designa genericamente como "barato".
Os baratos, de mil e uma formas e em mil e uma nuances, podem ocasionar diversos tipos e graus de transtorno, não só em quem os experimenta como naqueles que com este se relacionam. Não há de ser outra a razão por que tantos deles são proibidos e têm o comércio, ou mesmo uso, das drogas que os causam punido até com a morte. Não obstante, com toda a repressão, as drogas proibidas continuam a ser vendidas e existe muita gente que acha que seu barato vale o risco de uma longa prisão ou de execução. Não vem ao caso especular sobre as razões para isso, mas cabe um raciocínio econômico singelo: é fenômeno universal a oferta aparecer assim que aparece a demanda. Havendo nariz para cheirá-lo, haverá pó.
Ou seja, enquanto existir demanda, existirá quem forneça drogas. Não há nenhuma novidade nesta constatação, mas a guerra ao narcotráfico, contrariando todas as evidências, continua a tentar neutralizar a oferta e nada faz quanto à demanda. Esta jamais deixará de existir, mas pode, por uma fração mínima do que se gasta em repressão, ser razoavelmente controlada. Então por que será que verdade tão patente é descartada? Por que será que se continua a mover essa sangrenta guerra, tão vã e, sobretudo, tão dispendiosa?
Porque não interessa vencê-la e muito menos acabá-la. Quem pensa que interessa somos nós, o otariado. Não me refiro a indivíduos, mas ao que pode ser chamado de "sistema". Existe um vastíssimo sistema relacionado à repressão ao narcotráfico, composto não só pelas polícias genéricas e especializadas, mas por todas as estruturas criadas para colaborar nessa repressão. É a lógica de sua existência, através da qual têm sido mantidas e são diuturnamente ampliadas. Nacional e internacionalmente, esse aparato, que envolve desde ministérios e forças armadas a polícias de aldeias, tem como premissa que se deve combater um inimigo que se sabe que nunca será vencido, combate este com um número cada vez maior de frentes e custos cada vez mais elevados.
Claro, não é apenas esse mostrengo, cujo aparato intrincado e labiríntico não dá para ser inteiramente mapeado, que resiste, funcional e corporativamente, à mudança. O interesse sistêmico em manter-se tem que ser levado em conta, mas ainda maiores que ele são os interesses dos fornecedores, diretos e indiretos, de equipamentos e serviços. Corre muito dinheiro na guerra contra o tráfico e cairá o queixo de quem apurar na ponta do lápis o custo total apenas da operação do Alemão e sua manutenção com tropas federais. Os produtores e vendedores de armamento têm vivido grandes dias no Rio de Janeiro, o mercado só tende a ampliar-se, até mesmo com a propaganda.
Muito mais dinheiro ainda é movimentado pelo tráfico, que repassa seus custos ao consumidor, como é a prática empresarial de praxe. Se não houvesse repressão, esses custos baixariam vertiginosamente. Quem perderia? Não somente os vendedores de armas e equipamentos bélicos, mas os corruptos de todos os níveis e quilates. Para quem pensa que isso é coisa de Terceiro Mundo, lembre-se a corrupção policial nos Estados Unidos, durante a vigência da Lei Seca. E, somente em Nova York, os casos de corrupção policial envolvendo drogas fazem parte de um prontuário considerável. Em alguns países, a corrupção nem ao menos tenta manter as aparências, como muitas vezes ocorre aqui, mas é institucionalizada e contamina toda a cadeia a que se vincula.
A corrupção está disseminada em toda parte, não somente no sistema brasileiro, como no do mundo inteiro, em maior ou menor grau. Se não houver tráfico e a guerra santa contra ele, onde ficarão os ganhos dos corruptos, que não terão por que exigir comissões, subornos e propinas? É tolerável perder essa fonte de renda, em muitos casos milionária? Receio que não, e o mercado continuará a funcionar esplendidamente, para a felicidade harmoniosa de seus agentes, num entrelace delicado, em que o traficante agradece à repressão por lhe proporcionar um ramo de negócios lucrativo, a repressão e seus instrumentos agradecem ao traficante por fazê-los prosperar e o corrupto agradece a ambos pelo rico dinheirinho a ser malocado em contas secretas. "O mundo é perfeito", sempre diz meu amigo Benebê, em Itaparica. Isso mesmo.
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