sábado, novembro 20, 2010

MERVAL PEREIRA

Valores universais

MERVAL PEREIRA
O GLOBO - 20/11/10
O debate sobre a modernidade ganhou nova relevância no seminário da Academia da Latinidade com a palestra de ontem do sociólogo francês Alain Touraine, que fez uma análise sobre a crise por que passa a Europa, e o que restará do legado europeu para a modernidade do mundo ocidental.
No dia anterior, dois professores chineses Tong Shijun, vice-presidente da Academia Social de Ciências de Shangai, e Wang Ning, das Universidades de Shangai e de Tsinghua, defenderam a tese de que não existe um modelo único de modernidade, assim como pode haver múltiplas democracias.
Touraine, que ganhou este ano o Prêmio Príncipe de Astúrias de Comunicação e Humanidades pela sua contribuição para o pensamento moderno, embora cético quanto à saída do impasse da crise européia, defendeu o papel do mundo ocidental na disseminação da universalização dos direitos e da razão.
Quanto à situação européia atual, Touraine acha que “o mais importante não é a resistência da maioria às reformas necessárias, mas a incapacidade de todos, os favoráveis e os contrários a uma austeridade sustentada pelos assalariados, de mobilizar forças sociais e políticas capazes de promover um verdadeiro debate, um verdadeiro conflito político sobre o futuro da proteção social”.
Alain Touraine explica que duvida fortemente da capacidade européia de reforma social por que constata “a fragilidade ou o vazio de nossa consciência coletiva e a incapacidade do mundo político de mobilizar em seu favor os grandes ideais de justiça e de defesa dos direitos” a que os europeus são cada vez mais sensíveis.
Ele cita a Alemanha como exemplo de atitude correta diante da crise, limitando os salários reais, reduzindo o mercado interno, para mais adiante os sindicatos poderem recuperar terreno e garantir aumentos substanciais.
O sociólogo francês lembrou que a palavra “modernidade” foi criada por Theóphile Gauthier, um escritor de importância secundária, mas rebatizada por Baudelaire, que definiu modernidade como sendo “a eternidade no instante”.
Touraine propõe uma definição de modernidade que lhe parece corresponder a uma aspiração “forte e contínua”, mas não apenas no Ocidente: “A modernidade consiste em compreender e julgar as condutas e situações particulares, e mesmo individuais, em termos universais”.
Ele ressalta, porém, que não há nenhuma ligação maior entre o mundo ocidental e a modernidade além do avanço econômico feito por alguns países durante alguns séculos. “Não se trata de defender uma cultura ocidental que tem o monopólio do universalismo, afirmação que já foi rejeitada há muito pelo próprio mundo ocidental”, explica Touraine, para quem os europeus já não podem pensar, como acontecia no século XIX, que são o berço da ciência, da razão, da liberdade e da tolerância.
“A Europa foi tudo isso e seu contrário, em particular no espírito de conquista, de destruição e de construção de ideologias racistas”, registra o sociólogo francês.
É “preciso ser mesmo cego”, diz Touraine, para não ver que a Europa, onde nasceu esse tipo de modernidade, perde terreno para países como o Japão anteriormente, e hoje a China, onde se encontram os melhores exemplos de objetos e formas da vida moderna.
O sociólogo francês ressalta que hoje mesmo está aberto um debate bastante ativo que pode ser percebido no exterior, no interior do Comitê Central e mesmo no Bureau Político do Partido comunista chinês que coloca antagonicamente os que afirmam a necessidade de avançar dentro de um pensamento e uma ação universalista e os que, ao contrário, querem manter a unidade específica, tradicional e modernizada de uma sociedade ao mesmo tempo confucionista e comunista.
Para Alain Touraine, a globalização da economia, sobretudo financeira, mas também a da massificação do consumo, alargou o campo de debate sobre o humanismo e o universalismo, uns colocando como prioridade a razão científica, e outros a retomada da relevância dos Direitos do Homem.
Uma síntese dessa idéia seria “a universalização dos direitos e da razão”.
Touraine rejeita a idéia de que a universalização dos direitos destrói a diversidade de culturas. Para ele, a verdade é o contrário.
Ele garante que não existe nenhum argumento para se afirmar que o universalismo dos direitos é contraditório com a diversidade de situações, com as formas de organização social e as escolhas culturais.
Segundo Alain Touraine, o universalismo deve se traduzir em formas concretas, como, por exemplo, a cidadania, e também pela liberdade de consciência, e é deste modo a condição básica da existência de um multiculturalismo que, sem esse princípio universalista unificador se decompõe rapidamente em comunitarismos, lutas identitárias e em guerras civis ou estrangeiras.
Touraine diz que o mundo ocidental, em particular a Europa, perdeu seus privilégios, sua força e suas ideologias dominadoras e pode, por isso mesmo, defender um universalismo com capacidade de influência em todas as partes do mundo.
Ninguém pode negar o direito de orientar as diretrizes e as instituições de uma parte do mundo onde ele conheceu suas manifestações mais criativas e liberadoras, diz Alain Touriane a respeito do papel do mundo ocidental, em especial a Europa, na definição dos rumos do mundo moderno em transformação permanente.

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